Uso campeão
Em Portugal e no Brasil, o bom povo — ou, para sermos mais precisos, um ou outro beira-corgo — diz «uso campeão» querendo dizer «usucapião» (aquisição pelo uso), esse termo da linguagem do Direito. Até se lê em certos requerimentos: «Fulano vem requerer uso campeão…» É a lei do mais forte. Ah, e não existe o verbo *usucapiar, mas usucapir. E «usucapião», como a maioria das nossas palavras em –ão, é feminino, ao contrário do que se escreve até em manuais de Direito e do que defendem alguns, como Edite Estrela e o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. No Brasil, creio que é maioritário o uso do género masculino, seguindo, aliás, o que ali era oficial, consignado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguêsa de 1943, por sua vez mera adesão à correcção que Rui Barbosa, esse génio (aqui a dormitar), fez no parecer sobre a redacção do Código Civil.
[Post 4732]
Actualização no dia 30 de Abril de 2011
Como sou sempre o primeiro a afirmar, não é nada de decisivo, mas reparem que usucapião é do género feminino em italiano (usucapione), francês (usucapion), espanhol (usucapión) e inglês (usucapion). Em latim, ūsūcapĭō, -ōnis, donde nos chegou por via erudita, é palavra composta (usu+capio) e do género feminino. Talvez se possa atribuir a vacilação de género em português ao facto de usu, «uso», ser masculino.
Como sou sempre o primeiro a afirmar, não é nada de decisivo, mas reparem que usucapião é do género feminino em italiano (usucapione), francês (usucapion), espanhol (usucapión) e inglês (usucapion). Em latim, ūsūcapĭō, -ōnis, donde nos chegou por via erudita, é palavra composta (usu+capio) e do género feminino. Talvez se possa atribuir a vacilação de género em português ao facto de usu, «uso», ser masculino.
O Código Civil mantém a usucapião (no tempo em que a língua importava na feitura das leis).
ResponderEliminarNa prática há-de ter a fim que teve a mar.
(Esta remissão devo-a ao meu amigo D.)
«E pur…»
ResponderEliminar«Proíbe o Direito que o usucapião ou prescrição valha por razão de antiguidade de posse…»: padre Manuel Bernardes, «Estímulo Prático», XXXII, p. 432, «apud» José Pedro Machado, «Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa», Livros Horizonte, Lisboa, 2003, 8.ª ed., vol. V, p. 367.
- Montexto
Acabo de ouvir na Antena 2 da rádio, pelas 10 h 5 min, a diatribe de Vargas Llosa contra os flagícios infligidos à língua e gramática pelos novíssimos (faz-me lembrar alguém…) usando telemóveis ou a internet: que, se falam e escrevem como macacos, pensam como macacos, e outros mimos deste teor, e que se caiu na barbárie sintáctica (a locutora cuido que disse «sintéctica»).
ResponderEliminarPor isso chega a ser comovente ler estas coisa na internet:
{@passos coelho
Pedro Passos Coelho
A mudança tem que ser liderada
não por quem nos trouxe até aqui,
mas por quem tem algum crédito para gastar
daqui para a frente.}
(Alguém pode avisar os "marketeiros" que, em Portugal, já não há crédito? Ah, e que a mudança "tem de" ser liderada. Obrigado)»),
Blogue 31 da Armada, 27.IV.2011
- Montexto
Mas cá está mais um exemplo do cracíssimo dos solecismos em mais um novíssimo e na internet a dar razão ao velho Vargas e a confirmar a barbárie sintáctica: «Pelo que tenho visto ao longo das últimas semanas, o PSD só se pode queixar dele mesmo, designadamente por não saber reunir no seu seio os melhores» (blogue «O Cachimbo de Magritte», 28.IV.2011, 16 h 50 min).
ResponderEliminar*
Repetindo «espalharei por toda a parte», à saciedade e à sociedade, e até que a voz me doa:
- eu só me posso queixar de mim mesmo
- tu só te podes queixar de ti mesmo
- ele, ou o PSD, só se pode queixar de si mesmo
- nós só nos podemos queixar de nós mesmos
- vós só vos podeis queixar de vós mesmos
- eles, ou o PSD e outros como ele, só se podem queixar de si mesmos.
Ou seja, a basezinha das basezinhas.
Se conhecerem tanto de política e história e administração como de linguagem e gramática, já se sabe porque já desde muito parecia que havia de ser o que agora é.
- Montexto
Ainda a propósito de USUCAPIÃO:
ResponderEliminar- «Enciclopédia Portuguesa e Brasileira»: «Usucapião, s.[ubstantivo] m.[asculino]. Modo antigo de adquirir a propriedade, pela posse pacífica durante certo tempo; espécie de prescrição. [Segue-se o já citado exemplo de Bernardes, e estoutro:] “Para o usucapião extraordinário é necessário que os terrenos sejam prescritíveis, isto é, não sejam bens públicos de uso comum, como ruas, etc. …”, João Alfonsus, “Rola-Moça”, p. 195 (Do lat. “usucapione”).
- «Dicionário Compacto da Língua Portuguesa», feito sobre o de Morais por Augusto Moreno, Cardoso Júnior e José Pedro Machado, 4.ª ed., 1988: «Usucapião, s.[ubstantivo] m.[asculino], Modo antigo de adquirir a propriedade, pela posse pacífica durante certo tempo; espécie de prescrição.»
- «Dicionário Prático Ilustrado», Lello & Irmão – Editores, 1963: «Usucapião, s.[ubstantivo] m.[asculino], Modo antigo de adquirir a propriedade, pela posse pacífica durante certo tempo.»
- «Dicionário online de português»: «Usucapião, s.[ubstantivo] m.[asculino] Direito Maneira legal de se adquirir propriedade móvel ou imóvel pela posse pacífica e ininterrupta do bem durante certo período de tempo. Para os bens imóveis, o prazo para que ocorra a prescrição aquisitiva é de 20 anos, e para os bens móveis, dez anos, independentemente de justo título ou boa fé.»
- «Dicionário Aulete Digital»: «(u.su.ca.pi.ão) S[substantivo]2g[éneros]. 1. Jur. Direito de posse conferido a quem usa continuamente um bem (imóvel ou móvel) durante certo tempo determinado por lei [F.: Do lat. usucapìo,onis]».
*
Donde, até sem mais buscas, não será temerário coligir que a oscilação de género da voz «usucapião» assentará em fundamento mais atendível, se não sólido, do que o dormitar do senador.
- Mont.
Chamou-me a atenção a frase do Helder "E «usucapião», como a maioria das nossas palavras em –ão, é feminino". Embora seja fácil de confirmar - basta consultar uma dúzia de páginas num dicionário qualquer -, alguém se terá dado ao trabalho de pôr isto em números? Ou seja, qual é a percentagem de palavras terminadas em -ão que são do género feminino, e qual a percentagem das do género masculino?
ResponderEliminarRS
O «Dicionário Prático Ilustrado», Lello & Irmão – Editores, 1976 diz que a «usucapião» é feminina. Por causa do Código Civil, sem dúvida, e sem necessidade de absurdos jurídico-administrativos.
ResponderEliminarCumpts.
Usucapião, s. f. (Lat. usucapio, ou usucaptio, onis); (t. jur.) propriedade adquirida por posse continuada e consentida pelo dono da cousa.
ResponderEliminarin Novo Diccionario da Lingua Portugueza / o mais exacto e mais completo de todos os diccionarios até hoje publicados / contendo todas as vozes da lingua portugueza, antigas ou modernas, com as suas varias accepções, accentuadas conforme á melhor pronuncia, e com a indicação dos termos antiquados, latinos, barbaros ou viciosos, os nomes proprios da geographia antiga e moderna, todos os termos proprios das sciencias, artes e officios, etc., e sua definição analytica. Por Eduardo de Faria, Moço Fidalgo com exercicio, e Cavalleiro da Ordem de Crhisto. Terceira Edição. Lisboa, Imprensa Nacional, 1857
Estou que é hermafrodita. Nem as palavras à vacilação e ambiguidade...
ResponderEliminar- Mont.
Caro Bic,
ResponderEliminarEsse Lello não é parvo, não. Mando-lhe este comentário, no site da Priberam.
Faz, de resto, referência a um dos livros mais belos do decénio em Portugal, de José Cutileiro (alias A.B. Kotter), em que pouco se reparou.
http://blogue.priberam.pt/2011/04/lellito.html
Fui ao Vocabulário Ortográfico do Português (http://www.portaldalinguaportuguesa.org) e perguntei quantas palavras havia terminadas em “ão”. Resposta: 7172.
ResponderEliminarVerifiquei que a lista tem páginas com 100 palavras cada. Copiei as palavras da primeira página e das páginas começadas por 501, 1001, 1501, 2001, 2501, 3001, 3501, 4001, 4501, 5001, 5501, 6001, 6501 e 7001 – somando 1495 palavras (20%). Destas, 110 eram adjetivos, 1 advérbio, 2 interjeições – ficaram 1382 substantivos (92%). Contei 942 (68%) substantivos femininos e 441 (32%) masculinos. Podemos assim concluir que, nesta amostra, feita por método empírico e discutível, a maioria dos substantivos portugueses é do género feminino, como diz Helder Guégués.
Obrigado pelo esforço, R.A. Tendo em conta o tamanho da amostra, as percentagens verdadeiras não devem andar muito longe. Se o panorama actual do ensino se mantiver - espero bem que não; espero que, após as próximas eleições, o Sr. Sócrates seja banido para sempre de qualquer cargo governativo em Portugal -, a minha pergunta talvez dê origem a uma tese de doutoramento. A justificar louvor com distinção.
ResponderEliminarRS
Caro RS
ResponderEliminarObrigado pelo "elogio".
Só não percebi a referência ao Sócrates. Neste blogue não há (não deve haver) o hábito de aproveitar boleias para, a propósito da língua portuguesa, deitar a língua de fora...
Foi um despropósito que não posso deixar de rejeitar.
Completamente de acordo quanto ao Kotter, Venâncio. Eu reparei, e muito, inclusive no seu posfácio da sua autoria, numa das selecções publicadas, na Assírio & Alvim, se bem me lembro (não a tenho à mão). Tanto que até lhe li a tese inglesa, posta em linguagem com o título «Ricos e Pobres no Alentejo».
ResponderEliminar*
Quanto ao género da palavra «usucapião», o que os exemplos trazidos à balha autorizam que se diga fundadamente é que oscila na prática e uso desde o séc. XVII, tendendo a preponderar ultimamente o feminino em Portugal, e o masculino no Brasil, e nada mais. Porque, se fôssemos a julgar pelo peso das autoridades convocadas até agora, com Manuel Bernardes, Rui Barbosa, A «Portuguesa e Brasileira», Augusto Moreno, José Pedro Machado, Cardoso Júnior pelo masculino, não havia duvidar. Só que as autoridades têm de ser contrastadas com o uso - «ius et norma loquendi», - e este é que faz vacilar a balança.
E assim, de todos os dicionários, aquele que mais honesta e fielmente espelha o estado da questão é o «Aulete Digital».
- Mont.
«no posfácio da sua autoria», digo.
ResponderEliminar- Mont.
Já falámos de Ricos e Pobres no Alentejo aqui.
ResponderEliminarOra aí está. Muito folgo. Mas não sabia porque ainda não fui além dos textos de Março de 2007.
ResponderEliminar- Mont.
Não é assim tão despropositado, caro RS, porque uma das preocupações deste blogue é a defesa da Língua Portuguesa. Poderá levar tempo, mas algum dia alguém há-de debruçar-se sobre os males que estes últimos anos de governação fizeram, directa e indirectamente, à Língua Portuguesa.
ResponderEliminarRS
Muito grato pelas referências, Caro Venâncio. Segui as imediatas neste bocadinho (incluindo as do nosso anfitrião) e tenho aqui nota das restantes que não posso deixar passar.
ResponderEliminarGrande nível, isto cá!
Cumpts.
Todos os dicionários brasileiros, sem exceção, consideram usucapião substantivo de 2 gêneros.
ResponderEliminarQueria dizer «caro R.A.», evidentemente.
ResponderEliminarRS
São portanto os dicionários brasileiros que espelham honesta, fiel e prudentemente as vicissitudes do género de «usucapião» no espaço da língua portuguesa.
ResponderEliminar*
Nem as palavras escapam à vacilação e ambiguidade, era o que eu queria dizer lá riba, mas «escapam» escapou-me.
*
Ah, e em compensação eu compreendi perfeitamente a referência a Sócrates, que roboro fervorosamente, fazendo votos não por que o homem caia qual monumento, mas por que seja removido como uma nódoa, para me servir nesta campanha triste das palavras do autor de Uma Campanha Alegre. E assim se cumprem os desígnios deste blogue, curando-se de língua portuguesa, «com ocasionais reflexões e incursões noutras áreas».
— Montexto
Também «mar» em francês é do género feminino, e em espanhol forma expressões em que entra como feminina. E também eu antes diria que em português «usucapião» só admite o género feminino, como que eu próprio sempre a tenho empregado; mas, depois desta pequena busca, não pode subsistir dúvida da variação possível. Factos da língua, como diria Mário Barreto.
ResponderEliminar— Montexto
Quanto ao peso de «uso», masculino, na variação de género de «usucapião», não digo que não, antes que me parece possível. Lembro-me até de folhear um compêndio de direito em que aparece grafada «usocapião». Indicá-lo-ei ao diante porque não o tenho comigo.
ResponderEliminar— Montexto
Conheci este novo (para mim) verbo, roborar, que o Houaiss registra, tirado de José Pedro Machado, como aparecido em 838, certamente uma das mais antigas palavras da língua.
ResponderEliminarNo uso atual, corroborar, é bem mais novo, 'apenas' século XV.
Também para as palavras a antiguidade é um posto, ou devia ser. Novidades, hoje, não falta é quem as propale e invente.
ResponderEliminar- Mont.
«Usucapião» lembra-me o ou a «équivoque» francês ou francesa, que dá o título à sátira XII de Boileau:
ResponderEliminar«Du langage français bizarre hermaphrodite,
De quel genre te faire, équivoque maudite,
Ou maudit? car sans peine aux rimeurs hasardeux,
L'usage encor, je crois, laisse le croix des deux.»
- Mont.
«le choix des deux», leia-se.
ResponderEliminar- Mont.
Cá está o tal «uso», com «o»: «A posse, desde que seja em nome próprio e satisfaça outros requisitos essenciais [...], confere ao possuidor a propriedade da cousa possuída, decorridos que sejam os prazos fixados na lei, maiores ou menores, conforme os requisitos acidentais do título, do registo e da boa fé(“prescrição aquisitiva” ou “usocapião”).»
ResponderEliminarDr. José Tavares, Prof. da Faculdade de Direito, Os Princípios Fundamentais do Direito Civil, Coimbra Editora, 1922, vol. I, p. 640.
— Mont.
Sobre róbora/robora&c. v. as, Lições de Philologia Portuguesa dadas na Bibliotheca Nacional de Lisboa pelo Dr. Leite de Vasconcellos, Lisboa, A.M. Teixeira, 1911, pp. 81 e ss.
ResponderEliminarGrande Bic! E eu sem saber que as «Lições de Filologia Portuguesa» estavam em linha... Já para os favoritos.
ResponderEliminar- Mont.