28.4.11

Sobre «usucapião»

Uso campeão

      Em Portugal e no Brasil, o bom povo — ou, para sermos mais precisos, um ou outro beira-corgo — diz «uso campeão» querendo dizer «usucapião» (aquisição pelo uso), esse termo da linguagem do Direito. Até se lê em certos requerimentos: «Fulano vem requerer uso campeão…» É a lei do mais forte. Ah, e não existe o verbo *usucapiar, mas usucapir. E «usucapião», como a maioria das nossas palavras em –ão, é feminino, ao contrário do que se escreve até em manuais de Direito e do que defendem alguns, como Edite Estrela e o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. No Brasil, creio que é maioritário o uso do género masculino, seguindo, aliás, o que ali era oficial, consignado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguêsa de 1943, por sua vez mera adesão à correcção que Rui Barbosa, esse génio (aqui a dormitar), fez no parecer sobre a redacção do Código Civil.

[Post 4732]




Actualização no dia  30 de Abril de 2011


      Como sou sempre o primeiro a afirmar, não é nada de decisivo, mas reparem que usucapião é do género feminino em italiano (usucapione), francês (usucapion), espanhol (usucapión) e inglês (usucapion). Em latim, ūsūcapĭō, -ōnis, donde nos chegou por via erudita, é palavra composta (usu+capio) e do género feminino. Talvez se possa atribuir a vacilação de género em português ao facto de usu, «uso», ser masculino.

31 comentários:

  1. O Código Civil mantém a usucapião (no tempo em que a língua importava na feitura das leis).
    Na prática há-de ter a fim que teve a mar.
    (Esta remissão devo-a ao meu amigo D.)

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  2. Anónimo29.4.11

    «E pur…»
    «Proíbe o Direito que o usucapião ou prescrição valha por razão de antiguidade de posse…»: padre Manuel Bernardes, «Estímulo Prático», XXXII, p. 432, «apud» José Pedro Machado, «Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa», Livros Horizonte, Lisboa, 2003, 8.ª ed., vol. V, p. 367.
    - Montexto

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  3. Anónimo29.4.11

    Acabo de ouvir na Antena 2 da rádio, pelas 10 h 5 min, a diatribe de Vargas Llosa contra os flagícios infligidos à língua e gramática pelos novíssimos (faz-me lembrar alguém…) usando telemóveis ou a internet: que, se falam e escrevem como macacos, pensam como macacos, e outros mimos deste teor, e que se caiu na barbárie sintáctica (a locutora cuido que disse «sintéctica»).
    Por isso chega a ser comovente ler estas coisa na internet:
    {@passos coelho
    Pedro Passos Coelho

    A mudança tem que ser liderada
    não por quem nos trouxe até aqui,
    mas por quem tem algum crédito para gastar
    daqui para a frente.}

    (Alguém pode avisar os "marketeiros" que, em Portugal, já não há crédito? Ah, e que a mudança "tem de" ser liderada. Obrigado)»),
    Blogue 31 da Armada, 27.IV.2011

    - Montexto

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  4. Anónimo29.4.11

    Mas cá está mais um exemplo do cracíssimo dos solecismos em mais um novíssimo e na internet a dar razão ao velho Vargas e a confirmar a barbárie sintáctica: «Pelo que tenho visto ao longo das últimas semanas, o PSD só se pode queixar dele mesmo, designadamente por não saber reunir no seu seio os melhores» (blogue «O Cachimbo de Magritte», 28.IV.2011, 16 h 50 min).
    *
    Repetindo «espalharei por toda a parte», à saciedade e à sociedade, e até que a voz me doa:
    - eu só me posso queixar de mim mesmo
    - tu só te podes queixar de ti mesmo
    - ele, ou o PSD, só se pode queixar de si mesmo
    - nós só nos podemos queixar de nós mesmos
    - vós só vos podeis queixar de vós mesmos
    - eles, ou o PSD e outros como ele, só se podem queixar de si mesmos.
    Ou seja, a basezinha das basezinhas.
    Se conhecerem tanto de política e história e administração como de linguagem e gramática, já se sabe porque já desde muito parecia que havia de ser o que agora é.
    - Montexto

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  5. Anónimo29.4.11

    Ainda a propósito de USUCAPIÃO:
    - «Enciclopédia Portuguesa e Brasileira»: «Usucapião, s.[ubstantivo] m.[asculino]. Modo antigo de adquirir a propriedade, pela posse pacífica durante certo tempo; espécie de prescrição. [Segue-se o já citado exemplo de Bernardes, e estoutro:] “Para o usucapião extraordinário é necessário que os terrenos sejam prescritíveis, isto é, não sejam bens públicos de uso comum, como ruas, etc. …”, João Alfonsus, “Rola-Moça”, p. 195 (Do lat. “usucapione”).

    - «Dicionário Compacto da Língua Portuguesa», feito sobre o de Morais por Augusto Moreno, Cardoso Júnior e José Pedro Machado, 4.ª ed., 1988: «Usucapião, s.[ubstantivo] m.[asculino], Modo antigo de adquirir a propriedade, pela posse pacífica durante certo tempo; espécie de prescrição.»

    - «Dicionário Prático Ilustrado», Lello & Irmão – Editores, 1963: «Usucapião, s.[ubstantivo] m.[asculino], Modo antigo de adquirir a propriedade, pela posse pacífica durante certo tempo.»

    - «Dicionário online de português»: «Usucapião, s.[ubstantivo] m.[asculino] Direito Maneira legal de se adquirir propriedade móvel ou imóvel pela posse pacífica e ininterrupta do bem durante certo período de tempo. Para os bens imóveis, o prazo para que ocorra a prescrição aquisitiva é de 20 anos, e para os bens móveis, dez anos, independentemente de justo título ou boa fé.»

    - «Dicionário Aulete Digital»: «(u.su.ca.pi.ão) S[substantivo]2g[éneros]. 1. Jur. Direito de posse conferido a quem usa continuamente um bem (imóvel ou móvel) durante certo tempo determinado por lei [F.: Do lat. usucapìo,onis]».
    *
    Donde, até sem mais buscas, não será temerário coligir que a oscilação de género da voz «usucapião» assentará em fundamento mais atendível, se não sólido, do que o dormitar do senador.
    - Mont.

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  6. Anónimo29.4.11

    Chamou-me a atenção a frase do Helder "E «usucapião», como a maioria das nossas palavras em –ão, é feminino". Embora seja fácil de confirmar - basta consultar uma dúzia de páginas num dicionário qualquer -, alguém se terá dado ao trabalho de pôr isto em números? Ou seja, qual é a percentagem de palavras terminadas em -ão que são do género feminino, e qual a percentagem das do género masculino?
    RS

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  7. O «Dicionário Prático Ilustrado», Lello & Irmão – Editores, 1976 diz que a «usucapião» é feminina. Por causa do Código Civil, sem dúvida, e sem necessidade de absurdos jurídico-administrativos.
    Cumpts.

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  8. Usucapião, s. f. (Lat. usucapio, ou usucaptio, onis); (t. jur.) propriedade adquirida por posse continuada e consentida pelo dono da cousa.

    in Novo Diccionario da Lingua Portugueza / o mais exacto e mais completo de todos os diccionarios até hoje publicados / contendo todas as vozes da lingua portugueza, antigas ou modernas, com as suas varias accepções, accentuadas conforme á melhor pronuncia, e com a indicação dos termos antiquados, latinos, barbaros ou viciosos, os nomes proprios da geographia antiga e moderna, todos os termos proprios das sciencias, artes e officios, etc., e sua definição analytica. Por Eduardo de Faria, Moço Fidalgo com exercicio, e Cavalleiro da Ordem de Crhisto. Terceira Edição. Lisboa, Imprensa Nacional, 1857

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  9. Anónimo29.4.11

    Estou que é hermafrodita. Nem as palavras à vacilação e ambiguidade...
    - Mont.

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  10. Venâncio29.4.11

    Caro Bic,

    Esse Lello não é parvo, não. Mando-lhe este comentário, no site da Priberam.

    Faz, de resto, referência a um dos livros mais belos do decénio em Portugal, de José Cutileiro (alias A.B. Kotter), em que pouco se reparou.

    http://blogue.priberam.pt/2011/04/lellito.html

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  11. Fui ao Vocabulário Ortográfico do Português (http://www.portaldalinguaportuguesa.org) e perguntei quantas palavras havia terminadas em “ão”. Resposta: 7172.
    Verifiquei que a lista tem páginas com 100 palavras cada. Copiei as palavras da primeira página e das páginas começadas por 501, 1001, 1501, 2001, 2501, 3001, 3501, 4001, 4501, 5001, 5501, 6001, 6501 e 7001 – somando 1495 palavras (20%). Destas, 110 eram adjetivos, 1 advérbio, 2 interjeições – ficaram 1382 substantivos (92%). Contei 942 (68%) substantivos femininos e 441 (32%) masculinos. Podemos assim concluir que, nesta amostra, feita por método empírico e discutível, a maioria dos substantivos portugueses é do género feminino, como diz Helder Guégués.

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  12. Anónimo29.4.11

    Obrigado pelo esforço, R.A. Tendo em conta o tamanho da amostra, as percentagens verdadeiras não devem andar muito longe. Se o panorama actual do ensino se mantiver - espero bem que não; espero que, após as próximas eleições, o Sr. Sócrates seja banido para sempre de qualquer cargo governativo em Portugal -, a minha pergunta talvez dê origem a uma tese de doutoramento. A justificar louvor com distinção.
    RS

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  13. Caro RS
    Obrigado pelo "elogio".
    Só não percebi a referência ao Sócrates. Neste blogue não há (não deve haver) o hábito de aproveitar boleias para, a propósito da língua portuguesa, deitar a língua de fora...

    Foi um despropósito que não posso deixar de rejeitar.

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  14. Anónimo29.4.11

    Completamente de acordo quanto ao Kotter, Venâncio. Eu reparei, e muito, inclusive no seu posfácio da sua autoria, numa das selecções publicadas, na Assírio & Alvim, se bem me lembro (não a tenho à mão). Tanto que até lhe li a tese inglesa, posta em linguagem com o título «Ricos e Pobres no Alentejo».

    *
    Quanto ao género da palavra «usucapião», o que os exemplos trazidos à balha autorizam que se diga fundadamente é que oscila na prática e uso desde o séc. XVII, tendendo a preponderar ultimamente o feminino em Portugal, e o masculino no Brasil, e nada mais. Porque, se fôssemos a julgar pelo peso das autoridades convocadas até agora, com Manuel Bernardes, Rui Barbosa, A «Portuguesa e Brasileira», Augusto Moreno, José Pedro Machado, Cardoso Júnior pelo masculino, não havia duvidar. Só que as autoridades têm de ser contrastadas com o uso - «ius et norma loquendi», - e este é que faz vacilar a balança.
    E assim, de todos os dicionários, aquele que mais honesta e fielmente espelha o estado da questão é o «Aulete Digital».
    - Mont.

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  15. Anónimo29.4.11

    «no posfácio da sua autoria», digo.
    - Mont.

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  16. Já falámos de Ricos e Pobres no Alentejo aqui.

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  17. Anónimo29.4.11

    Ora aí está. Muito folgo. Mas não sabia porque ainda não fui além dos textos de Março de 2007.
    - Mont.

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  18. Anónimo29.4.11

    Não é assim tão despropositado, caro RS, porque uma das preocupações deste blogue é a defesa da Língua Portuguesa. Poderá levar tempo, mas algum dia alguém há-de debruçar-se sobre os males que estes últimos anos de governação fizeram, directa e indirectamente, à Língua Portuguesa.
    RS

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  19. Muito grato pelas referências, Caro Venâncio. Segui as imediatas neste bocadinho (incluindo as do nosso anfitrião) e tenho aqui nota das restantes que não posso deixar passar.
    Grande nível, isto cá!
    Cumpts.

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  20. Paulo Araujo30.4.11

    Todos os dicionários brasileiros, sem exceção, consideram usucapião substantivo de 2 gêneros.

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  21. Anónimo30.4.11

    Queria dizer «caro R.A.», evidentemente.
    RS

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  22. Anónimo30.4.11

    São portanto os dicionários brasileiros que espelham honesta, fiel e prudentemente as vicissitudes do género de «usucapião» no espaço da língua portuguesa.
    *
    Nem as palavras escapam à vacilação e ambiguidade, era o que eu queria dizer lá riba, mas «escapam» escapou-me.

    *
    Ah, e em compensação eu compreendi perfeitamente a referência a Sócrates, que roboro fervorosamente, fazendo votos não por que o homem caia qual monumento, mas por que seja removido como uma nódoa, para me servir nesta campanha triste das palavras do autor de Uma Campanha Alegre. E assim se cumprem os desígnios deste blogue, curando-se de língua portuguesa, «com ocasionais reflexões e incursões noutras áreas».
    — Montexto

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  23. Anónimo30.4.11

    Também «mar» em francês é do género feminino, e em espanhol forma expressões em que entra como feminina. E também eu antes diria que em português «usucapião» só admite o género feminino, como que eu próprio sempre a tenho empregado; mas, depois desta pequena busca, não pode subsistir dúvida da variação possível. Factos da língua, como diria Mário Barreto.
    — Montexto

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  24. Anónimo30.4.11

    Quanto ao peso de «uso», masculino, na variação de género de «usucapião», não digo que não, antes que me parece possível. Lembro-me até de folhear um compêndio de direito em que aparece grafada «usocapião». Indicá-lo-ei ao diante porque não o tenho comigo.
    — Montexto

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  25. Paulo Araujo30.4.11

    Conheci este novo (para mim) verbo, roborar, que o Houaiss registra, tirado de José Pedro Machado, como aparecido em 838, certamente uma das mais antigas palavras da língua.
    No uso atual, corroborar, é bem mais novo, 'apenas' século XV.

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  26. Anónimo30.4.11

    Também para as palavras a antiguidade é um posto, ou devia ser. Novidades, hoje, não falta é quem as propale e invente.
    - Mont.

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  27. Anónimo1.5.11

    «Usucapião» lembra-me o ou a «équivoque» francês ou francesa, que dá o título à sátira XII de Boileau:
    «Du langage français bizarre hermaphrodite,
    De quel genre te faire, équivoque maudite,
    Ou maudit? car sans peine aux rimeurs hasardeux,
    L'usage encor, je crois, laisse le croix des deux.»
    - Mont.

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  28. Anónimo1.5.11

    «le choix des deux», leia-se.
    - Mont.

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  29. Anónimo2.5.11

    Cá está o tal «uso», com «o»: «A posse, desde que seja em nome próprio e satisfaça outros requisitos essenciais [...], confere ao possuidor a propriedade da cousa possuída, decorridos que sejam os prazos fixados na lei, maiores ou menores, conforme os requisitos acidentais do título, do registo e da boa fé(“prescrição aquisitiva” ou “usocapião”).»
    Dr. José Tavares, Prof. da Faculdade de Direito, Os Princípios Fundamentais do Direito Civil, Coimbra Editora, 1922, vol. I, p. 640.
    — Mont.

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  30. Sobre róbora/robora&c. v. as, Lições de Philologia Portuguesa dadas na Bibliotheca Nacional de Lisboa pelo Dr. Leite de Vasconcellos, Lisboa, A.M. Teixeira, 1911, pp. 81 e ss.

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  31. Anónimo2.5.11

    Grande Bic! E eu sem saber que as «Lições de Filologia Portuguesa» estavam em linha... Já para os favoritos.
    - Mont.

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