29.6.08

Pontuação

A quem interesse

Depois da Oficina de Pontuação, poder-se-ia publicar a respectiva acta. Mais modestamente, publico apenas um parecer da Academia Brasileira de Letras (ABL) sobre a pontuação de uma das frases, objecto de alguma controvérsia. A famosa frase 67: «Ao mesmo tempo, a gravação facultou à música uma história, não só das composições e tradições, mas também das execuções, mantendo-as disponíveis durante décadas.» Diz a ABL: «A vírgula depois de “história” se justifica por estar separando termos intercalados (“não só das composições e tradições,”); “história” não é o sujeito da oração; o sujeito é a “gravação”; “história” é o objeto direto de “facultou”.»

12 comentários:

Xantipa disse...

Esta situação faz-me lembrar a do reconhecimento do sujeito ou do complemento directo. Quantas vezes, só porque não está no primeiro lugar na frase, o sujeiro é identificado como complemento directo e vice-versa.
Como o início de «Os Lusíadas» (não sei fazer itálicos nos comentários) é muito conhecido, uso a primeira frase para explicar que não é sujeito só porque aparece em primeiro lugar, mas é o complemento directo de «cantando espalharei por toda a parte», que aparece umas estrofes depois.

Helder Guégués disse...

Decorre também do desconhecimento da ordem canónica em português e das consequências na pontuação quando se dá a sua inversão. Ter tido Latim também ajuda a identificar inequivocamente o sujeito e os complementos.

Nuno Dempster disse...

"não só das composições e das tradições..." parece-me o predicativo do complemento directo. Mas mesmo que não o seja, eu não poria a vírgula, nem que fosse só por uma questão estética, de afirmação de um ritmo. Em minha opinião, muito pior que vírgulas a menos são vírgulas a mais gramaticalmente correctas (o que não me parece acontecer neste caso). Oxalá não passe aos ilustres um acordo sintáctico para acabarem de dar cabo do que ainda nos vai restando.

Helder Guégués disse...

Estética, hein? Se nem sequer a semântica e a prosódia têm que ver com a pontuação, imagine se a estética é aqui chamada. Estética por estética, eu não poria vírgulas em nenhuma frase. A justa medida da pontuação é aferida somente pela correcção face à sintaxe.

Anónimo disse...

Estive na Oficina de Pontuação e de facto foi um dos pontos que não entendi. A questão não é ter identificado erradamente o sujeito e o predicado e respectivos complementos, mas sim o julgar que não se deve introduzir uma vírgula entre os elementos de uma mesma oração. Procurando no Ciberdúvidas, descobri que afinal não sou a única a considerá-lo. Está lançado o debate!

http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=18251

Helder Guégués disse...

Primeiro, era preciso que a frase fosse igual, e não é. Segundo, como argumento de autoridade, deixa muito a desejar. A equipa da Academia Brasileira de Letras é orientada por Sergio Pachá e Evanildo Bechara, mais que estudiosos, génios da língua. Mas, de qualquer maneira, e é para isso que também serve este blogue, está lançado o debate.

Nuno Dempster disse...

Se a semântica e a prosódia não têm que ver com a pontuação, já o mesmo não se passará com o ritmo da escrita, e é aqui que o virgular e a pontuação em geral podem assumir um papel estético, juntamente com a prosódia. É um facto facilmente constatável em prosa literária do séc. XX até hoje, e era a essa que eu me referia, não vendo mal nenhum que se possa escrever assim uma carta profissional ou mesmo um relatório. A meu ver, neste tipo de prosa, e ainda mais na escrita poética, a pontuação gramatical a preceito é muitas vezes um espartilho, sendo certo que esse espartilho tem de ser precedido do conhecimento cabal das regras de pontuação.

Ora o que estava aqui em jogo nem era isto, era o uso correcto da tal vírgula. Restou-me saber se "não só das composições e tradições" é o predicado do complemento directo. A mim parece-me que é, e se é, a vírgula está erradamente posta. Atenda, por favor, a que o único currículo que trago dessa área é o de ter tido excelentes professores de Português.

E depois, invocando eu de novo a estética, repare como, sem a vírgula, a frase fica muito mais corredia, como fica com mais ritmo, como deixa de ter a engasgadela na leitura da ABL. Como fica mais bonita, em suma.

Só pretendia trocar opiniões sobre assuntos da língua portuguesa, tema que me traz apaixonado desde a adolescência, em que lia a gramática de Epifânio como se fosse um livro do Sandokan. Mas tenho de pensar que pode não lhe apetecer tal coisa, que o seu blogue não é um ciberdúvidas.

Enfim, peço desculpa pelo tamanho do comentário.

Anónimo disse...

Também me parece que não é exactamente igual (a locução da «frase 67» pode ter um valor de certa forma explicativo, e a da frase do Ciberdúvidas tem um valor restritivo), mas eu utilizaria vírgula apenas se o valor fosse claramente explicativo.

Ainda a propósito da resposta do Ciberdúvidas... A consultora refere que, na frase «Ele era o ilustre professor Casinhas, conhecido[,] não só pela sua proverbial antipatia[,] mas também pelos seus inegáveis dotes artísticos.», a segunda vírgula deve ser utilizada porque separa orações. Não havendo um verbo conjugado (explícito ou implícito), há alguma oração em «mas também pelos seus inegáveis dotes artísticos»?

No caso particular desta locução, parece-me que o que tem mais sentido é pôr vírgula quando separa orações e não pôr quando tal não acontece:
«Comprei não só morangos mas também laranjas.»
«Não só fui à praia, como fui ao cinema.»

N. disse...

Quando entramos na estética e num domínio mais subjectivo, torna-se bastante mais difícil discutir a questão. Que a literatura utiliza os recursos da língua, para, muitas vezes, a deturpar e brincar com ela, é um facto. Basta ler C. Cunha e L. Cintra (entre tantos outros) para perceber como as próprias gramáticas prevêem essa utilização particular da língua.

Que «uma frase [fique] bonita» é um juízo de valor e, como tal, de argumento tem pouco ou nada. Pessoalmente, não vejo onde existe «a engasgadela» ou onde é que a vírgula em causa obsta à leitura da frase. Mesmo assumindo que possa existir, creio que convocar a literatura e o ritmo é confundir o que está a ser discutido.

Anónimo disse...

«Restou-me saber se "não só das composições e tradições" é o predicado do complemento directo.»

Não é um complemento determinativo de «história»?

Nuno Dempster disse...

Pegando no que Rita Almeida e Sofia escreveram, se tivesse sido eu a escrever as duas frases precedidas da locução mas também, não hesitaria em tê-las pontuado com a vírgula. Mais, não me soava se o não fizesse, e algumas vezes é de nos soar ou não que chegamos à escrita correcta. O ouvido sente ali uma pausa. E depois, só depois, há a gramática para confirmar a nossa razão ou a falta dela, e só nessa altura porque, antes de escrever como escrevemos e ao longo dos anos desse exercício e de leitura, já nos viemos especializando na pontuação, a começar pelos anos de estudo escolar. Sucede também que a Língua é viva não apenas por evoluir, mas também porque é uma matéria-prima de Arte. E que mais vivo pode haver para a Língua do nosso tempo que uma peça de boa, de insofismavelmente boa literatura contemporânea portuguesa?

E já me esquecia do eventual predicativo do complemento directo na frase em questão. É importante, porque a haver, temos uma base gramatical para recusar a vírgula. Caso não me elucidem aqui, darei notícias, depois de consultar um amigo meu, que é um óptimo professor de Português.

Nuno Dempster disse...

Para Sofia: a gralha, que falou indevidamente como todas as gralhas, queria dizer predicativo.

Para Nuno Q. Tem razão, é ter confundido ou não ter percebido o carácter eminentemente técnico do assunto. Releve-me essas faltas à ordem de trabalhos. Não tenho competência para falar de outro modo (a minha formação é numa das engenharias). Ainda por cima a TLEBS veio baralhar-me as ideias. O meu interesse na língua portuguesa é literário, da cidadania que se vai perdendo e também da sua defesa como forma de resistir a essa erosão. As línguas são cada vez mais o último reduto do conceito de pátria. Quanto à engasgadela, para mim existe. Mas isso é puramente subjectivo e possivelmente de hábitos meus.