Estágio na primária
Alberto Gonçalves conseguiu ver a última emissão do programa Prós e Contras, e sobreviveu para nos contar alguns momentos: «Por regra, as criaturas em questão [os jovens convidados] comunicavam através de lugares-comuns do género “O futuro é nosso!”, ou de puros disparates, de que a insistência na palavra (?) “proactividade” era um dos mais irritantes. Não vi os infelizes que, na tese dos Deolinda, estudaram para ser escravos. Vi meninos estragados pelos pais e pelo ensino indigente a reclamar os privilégios que supõem beneficiar as gerações anteriores e que, a julgar pela retórica pedestre, estudaram pouco. Um deles evocou a queda de Mubarak. Outro proclamou solene: “Não ‘deiem’ estágios mal remunerados.” É improvável que lhes ‘deiem’ estágio algum» («Basta de realidade», Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 6.03.2011, p. 71).
É também a tese de João Pereira Coutinho: esta geração quer a vida que os pais e os avós tiveram, a mesma segurança e certeza. Não há-de é haver divergência sobre a ignorância com que falam e escrevem. «Deiem» existe — mas em catalão: deia, deies, deia, dèiem, dèieu, deien. Logo, em catalão todos dirão, e bem, «dèiem», em português só os ignorantes. E não apenas dizem, senão que escrevem, é ver por essa Internet fora. Da evolução do latim para o português sim, a epêntese, o fenómeno fonético que consiste no acrescentamento de fonema ou sílaba no meio de palavra, foi crucial.
[Post 4527]
8 comentários:
Não vejo, sinceramente, onde está o problema. A pronúncia-padrão é, efectivamente, dêiem (ou, em Lisboa/Coimbra, dâiem).
Não estereis, senhores, a confundir com dêiam, a conhecida variante escarnecida?
Pelo visto, o Jovem, ainda uma divindade, talvez agora um pouco em «uma espécie de calvário», está a dar largas à sua imensa criatividade e sã rebeldia, conjugando o verbo «dar» como Epifânio regista na sua gramática que então, e já um pouco antes, a turba insensata passou a conjugar os verbos «ler» e «crer», até a balda concitar o beneplácito de alguns homens da glote e tripudiar por aí nos conjugadores e textos mais recentes e acessíveis, como já se viu aqui, lá muito para trás.
Cada um deixa na língua a marca que pode...
— Montexto
Aproveito para um pedido de esclarecimento. No Dicionário de dúvidas, dificuldades e subtilezas da língua portuguesa, de Edite Estrela e.a. (Dom Quixote, 2010), leio, a propósito de grafias (dadas como erradas) caiem ou saiem, o seguinte, respectivamente:
«Há quem se engane a escrever esta palavra [...]. Para os ouvidos menos treinados, pode parecer que a palavra tem um i»
e depois
«Esta palavra escreve-se sem i, embora, na pronúncia, soe como se tivesse um i entre os a e o e para evitar hiato».
Que comentais? Agradeço, penhorado, porque vou recensar o livro.
"recensear" (está bem de ver...)
Também a respeito de roem escrevem as autoras:
«Esta palavra escreve-se sem i, embora, na pronúncia, soe como se tivesse um i entre o a e o e para evitar hiato».
Sobre doem ou moem nada dizem. Mas podemos supor que diriam o mesmo.
Eu diria que aquele asserto de «... embora, na pronúncia, soe como se tivesse um i entre os a e o e para evitar o hiato» há mister acerto. Rectius: há mister acertos, pelo menos dois.
1.º Soa como se tivesse um i, sim, mas não bastará dizer que é na pronúncia, sem mais, mas antes precisar, reduzir e limitar essa pronúncia à das camadas mais populares, ou à dos momentos de descuido das pessoas escoimadas no falar. O bom povo também raro dirá «a água», mas sim, mais amiúde, «a iágua» (em plagas mais rurais: a iauga»). Parece-me que há grande tendência para este tipo de fenómenos. Lembremos o que sucede ou sucedeu com as formas «leamos, creamos», ainda registadas como as únicas correctas por Rodrigo de Sá Nogueira no seu dicionário de verbos conjugados, e ainda antes dele por Epifânio, que todavia já dava notícia das adventícias e concorrentes «creiamos» e «leiamos», que entretanto ganharam terreno e dicionários (como já vimos aqui, em anterior comento).
2.º A frase está torta. Se a levassem ao endireita, ele dava-lhe uns safanões e deixava-a assim: — «embora, na pronúncia, soe como se tivesse um i entre os a e e para evitar o hiato»; ou assim, e melhor: — «embora, na pronúncia, soe como se tivesse um i entre o a e o e para evitar o hiato». — «... um i entre OS a e O e...» é que nunca.
Mas, se lhe vai recensear o parto, e a julgar pelo que tenho ouvido à boa da Senhora, se ela não for mais selecta na escrita do que na fala, prepare-se para o pior. Enfim, se da leitura se pegar alguma impureza de maior, nada que em todo caso não se remova facilmente com uns bons caldos de Vieira em doses áfias e reforçadas.
— Montexto
Montexto,
Em tempo: «... um i entre os a e o e...» foi erro meu de transcrição. Fica sanado.
Quanto ao resto, você parece-me um empertigado quatrocentista que olha em volta e diz: «Esta gente pelintra anda a pronunciar alheio, receio, ceia, meia... Para onde vai esta língua, bons céus?»
Sempre o português resolveu hiatos por intromissaão dum yod. Umas vezes passou ele a escrever-se (lembre o caso de leiamos), outras não.
O facto poderia ser estrutural. Segundo alguns históricos, o galego-português tende para a criação de ditongos descendentes (ao invés do castelhano, com os seus ascendentes ie e ue) e isso teria a ver com um forte, e ainda dinâmico, substrato celta.
Mas agradeço o seu contributo,e aguardo o de outros, se tanto puder ousar.
Aos quatrocentistas não tenho nada que opor: nunca tão poucos fizeram tanto e tão grande. O mais há-de ser erro de perspectiva.
O português tendeu, tende e tenderá sempre para muitos lados e coisas mais ou menos necessárias ou escusadas e certas ou erradas, favorecido nuns declives por estes, noutros por aqueles. O meu pendor em matéria de língua espero que bem se deixe ver que em geral e no particular é seguir, observar e defender a regra mais estrita. Para confundir, divergir e marear —«desconstruir», como lhe chama a plebe letrada e científica — conto com os outros, e nisto nunca me faltam. Há-de ser o que for, como sempre. Mas cada um defenda a sua posição; depois se verá.
— Montexto
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