27.3.11

Linguagem

Contem-me coisas

      «A pobre andava tão atrasada de víveres que nem deu porque havia ali coisa no ar» (Nome de Guerra, Almada Negreiros. Lisboa: INCM, 1986, p. 49). «A pobre andava tão atrasada de víveres que nem deu por que havia ali coisa no ar» (Nome de Guerra, Almada Negreiros. Assírio & Alvim, p. 2001, p. 26). «Este burro de Gottenheld não deu por que havia mudança na vida, não soube ver que o seu caminho estava engolido pela água escura, e que o seu habitual itinerário não tinha agora sentido, nem ninguém o queria» (O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana, Mário de Carvalho. Lisboa: Vega, 1982, p. 56).
      
[Post 4620]

7 comentários:

Eduardo disse...

«Nem reparou que», digo eu...

Mas a ter de ser «por» e «que», então sejam separados, uma vez que não há conclusão.

Eduardo disse...

Ou então: «Nem deu pelo facto de ali haver/de que ali houvesse»

Anónimo disse...

Aqui não lhe posso contar grande coisa, Helder, senão que obviamente quem está certo é Mário de Carvalho.
Mas, para evitar ambiguidades ao ouvido, eu aconselharia que se evitasse até o giro deste último. É fácil. Bastaria escrever:
• nem reparou em que havia ali coisa no ar.
• nem atentou em que havia ali coisa no ar,
• nem advertiu em que havia ali coisa no ar,
• nem deu fé de que havia ali coisa no ar,
• nem deu tento de que havia ali coisa no ar.
Ou, vá lá, se preferirdes:
• nem reparou que havia ali coisa no ar,
• nem atentou que havia ali coisa no ar,
• nem advertiu que havia ali coisa no ar,
• nem deu fé que havia ali coisa no ar,
• nem deu tento que havia ali coisa no ar,
• etc.

*
«Víveres» também se pode melhorar vernaculizando-o em «vitualhas».

*
Sobre Nome de Guerra Venâncio e eu já deixámos aqui esboçado o nosso voto. O meu funda-se noutras qualidades que não a qualidade da linguagem.
Mas ai de quem espera encontrar nos moderníssimos propriedade língua e brio! Logo o desengano frio lhe desfaz toda a ilusão e crença.
Não procure lá mais erros, porque, senão, encontrará.
— Montexto

Franco e Silva disse...

POR ... QUE, não é? (locução conjuntiva final, com o valor de «para que», «de modo a que»).

Nós sugeriríamos que se tentasse substituir as orações: "... POR HAVER ali coisa no ar" e "... POR HAVER mudança de vida" para evidenciar a separação POR/QUE..

Eduardo disse...

Caro Montexto:

comete-se, de facto, muito erro por aí. É igualmente verdade que há muita ignorância - até mesmo em aspectos básicos (eu também me incluo no rol).

No entanto, que teria dito Fernão Lopes de Camões, Camilo ou Eça? Até Correia Garção anota que «Camões dizia "imigo"; eu, "inimigo"».

Há uma linha ténue entre o abastardamento e a natural (necessária?) evolução das coisas. Concordo que a «inovação» devia ser feita por quem sabe o que está a fazer: Miranda, Ferreira, Camões sabiam latim que até metia nojo. Quem não sabe, devia ter a humildade de reconhecer a ignorância e de procurar aprender com quem sabe, estamos de acordo.

Deploro os assassinatos que todos os dias são cometidos por aí a torto e a direito. Mas meter tudo no mesmo saco e correr tudo a falta de «propriedade, língua e brio»...

Anónimo disse...

Já que estamos a saborear os primores dos moderníssimos, aí vão mais dois, desta feita do poeta Pitta, no «Ípsilon» do Público, de 25.03.2011:
• «Um dos meus “atritos” com Torga releva do facto de só se medir com Camões»;
• «Em ambos, a judia de Manhattan e o checo que deveio francês, o “gesto brutal” da admiração.»
Para meditar.
— Montexto

Anónimo disse...

Caro Eduardo, o que se vai dizendo, vá-o entendendo sempre — cum grano salis.
— Mont.