Livre, solto
«Entretanto, o político mais “desagarrado” do poder (desculpem a palavra) ia a Matosinhos tratar da sua periclitante situação. “O PS está todo comigo?”, perguntou ele. O PS estava fervorosamente, absurdamente, histericamente com ele. Este jornal classificou a coisa como “um extraordinário momento de propaganda”; e com razão. Não me lembro de ouvir nenhum primeiro-ministro pedir com tanto descaro num congresso a confiança pessoal, que Sócrates pediu» («Uma crise de nervos», Vasco Pulido Valente, Público, 10.04.2011, p. 36).
Homessa, pedir desculpa porquê?! Desagarrado é portuguesíssimo. Camilo usou-o a flux. Vá um exemplo colhido nas Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado: «Se eu não fosse tão desagarrado do alheio, há muito que a nossa filha estava casada com ele; mas tu embirraste com o rapaz, e fizeste aquele despautério quando íamos para Santa Ana de Oliveira... Valha-te Deus, valha-te Deus!...» Eu teria tido mais pruridos em usar «descaro». Sim, parece derivado regressivo de «descarar», mas vejo-o muito mais em obras espanholas que portuguesas. Ou será uma questão de sobrevivência: em espanhol persiste, é ainda agora usado, ao passo que em português quase o deixou de ser.
[Post 4673]
4 comentários:
É verdade que é muito mais frequente ouvir «descaramento» do que «descaro», mas também é verdade que ambas as palavras estão presentes em quase todos os bons dicionários.
Quanto a «desagarrado», realmente não se justifica o pedido de desculpas de Vasco Pulido Valente.
RS
A forma «descaro» sempre me foi familiar, nem me suscita reserva alguma. A 8.ª do da Porto Ed. regista-o, remetendo para «descaramento».
Mas «desgarrado» entre aspas, como outro dia «casa» (de botão), eu ia a dizer que não tem ponta por onde se lhe pegue; mas, pensando melhor, tem uma pontinha que se aguenta durante os tais cinco minutos de Cândido de Figueiredo: o afunilamento e empobrecimento da língua hoje em dia é tal e tamanho, que uma pessoa, ao usar uma palavrinha um tanto ou quanto... «desgarrada» do trilho comum e das 200 ou 300 mais consuetas, sente-se obrigada a chamar a atenção para o sentido que se lhe afigura poder escapar aos ouvidos da turba insensata, que à primeira leitura pode não atingir («realizar», dizem agora os novíssimos, Deus lhes perdoe), e daí nascem as aspas e — mirabile visu! — até os pedidos formais de desculpas.
Chegámos a isto.
— Montexto
«E pior: — ainda a enxotaram, aos berros, para frente (sua fecundidade obstruía a passagem). Assim a “mater” espremida foi até o fim. Eu já imaginava que o garoto ia nascer ao primeiro solavanco. Tal descaro seria inevitável em 1919. Naquele tempo, tirava-se o chapéu à mulher grávida como a uma igreja. Hoje, não usamos nem o chapéu, nem o respeito» (Nelson Rodrigues, O óbvio ululante, Companhia das Letras, São Paulo, 2003, 9.ª reimpressão, 2003, p. 65).
— Montexto
Só agora reparei em que a palavra posta entre aspas no passo comentado é o correntio «desagarrado», e não o talvez menos vulgar «desgarrado», como eu entendi, erradamente.
Assim ainda se compreendem menos as aspas.
— Montexto
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