A desacautelada
«Ora, perante o grande número de foras-da-lei que aterrorizavam a zona [Carolina do Sul] em determinada altura, a população deu ao juiz Lynch carta branca para passar aquela que ficou conhecida como a lei de Lynch e que consistia na execução imediata do réu, dado como culpado, sem possibilidade de apelo e como parte integrante da sentença, execução essa que era feita nas instalações do tribunal e à vista de todos. Como se imagina, a injustiça, pela sua crueldade, passar desapercebida e o juiz que a praticou, John Lynch, deu origem ao verbo “linchar” e à expressão “ser linchado”» (Lugares Comuns, Mafalda Lopes da Costa, Antena 1, 9.05.2011).
Fora-da-lei é invariável, como se pode ver em qualquer dicionário: um fora-da-lei, mil fora-da-lei. Quanto a «desapercebida», é erro muito comum e já aqui tratado mais de uma vez. «Homem desapercebido, meio combatido», diz o adágio.
[Post 4763]
6 comentários:
É uma questão de princípio, e mesmo assim muito prática: valerá a pena recarregar um vocábulo (no caso, «desapercebido») com um conteúdo (o de desprovido) que já em boa parte se esvaiu, sobrevivendo em ditados?
Veja-se como se exprime Júlio Dinis, na Morgadinha: «Efectivamente não tinham passado desapercebidos do padre os comentários de Henrique, nem os sorrisos mal disfarçados de Madalena».
Helder (e Montexto): estas escaramuças de retaguarda parecem-me tremendamente elitistas. Não haverá batalhas mais rendosas?
Acrescento:
EQ, Maias: « Foi um detalhe que passou desapercebido no grande escândalo.»
Teixeira-Gomes, Gente Singular: «Ela parecia, no começo, desapercebida de todas estas minúsculas manobras».
Júlio Dantas, Os Galos de Apolo: «E essa cena de tentação, que primeiro passara desapercebida ao pastor, ia-lhe agora despertando atenções minuciosas e complicadas ideias».
Bom, três grandes estilistas, dos maiores que jamais tivemos.
E atenção: sempre defenderei, em matéria de idioma, formas de resistência. Mas também de gestão de energias.
Desta vez discordamos, Fernando. É mais ou menos transversal a compreensão de que não são sinónimos. E não se trata de «desapercebido» viver somente em ditados, mas, não tendo aplicação, não se usar. É esta a minha forma de resistência. Quanto às abonações, faltou citar Camões, mas eis que lhe responde do Além o mestre dos mestres: «Os factos da linguagem, em abono da opinião do Sr. Graça, — que despercebido é o mesmo que desapercebido, — reduzem-se a um verso de Camões, em que o poeta juntou um a protético ao particípio» (Problemas da Linguagem, Cândido de Figueiredo. Lisboa: Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira & C.ª (filhos), 1945, p. 93). Posso supor, sem errar muito, que nada mudou desde então.
«Desapercebido» por «despercebido», erro resultante da semelhança, fautora do nosso velho conhecido confusionismo, mais relho do que se possa cuidar ao primeiro lance.
Eça, infinito estilo, graça e outras qualidades a flux, entre as quais não a pureza e propriedade de linguagem, pelo menos não no mesmo grau que as outras.
Teixeira-Gomes praticou muito Bernardes, mas já por essa, e por outras que lhe conheço, porventura não o bastante.
Júlio Dantas, a bem dizer, não o conheço.
Só Júlio Dinis me causa alguma estranheza, por mais próximo do tempo das boas praxes.
Mas estou com D. Duarte: quem há aí tão acabado que tudo diga e faça perfeitamente? Todo o escritor tem o seu deslize, que às vezes lhe fica inadvertido, por muitas razões, entre as quais a falta de crítica, inclusive dos amigos. Nós, por isto ou por aquilo, atentamos nessa falta, erro ou impropriedade. Ainda assim, somos obrigados a sufragá-lo só porque este ou aquele escritor de nomeada cincou uma e outra vez?
Não conteis comigo.
Já me bastam os «erros meus e má fortuna».
— Montexto
Já por isto, já por aquilo, mas sempre em prejuízo da mera e humilde correcção: «Ponham os socialistas a governar o Sahara e, passado seis meses, estão a precisar de importar areia», Albergue Espanhol, 10.V.2011. E assim se embota um dito tão agudo.
— Mont.
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