Quem fez isto?
Talvez F. V. Peixoto da Fonseca tivesse razão: o feminino (e o plural) oficial de «todo-poderoso» é um disparate. «Todo» é advérbio? Recuamos e o que se lê sempre é (esqueçamos agora o hífen) todo poderoso, todo poderosos, toda poderosa, todas poderosas. Temos de esperar que se legisle noutro sentido.
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14 comentários:
Outro dia, um Napoleão na sua Waterloo; hoje, um Peixoto fora de água.
Conste pois que «there are more things in portuguese language, F. V. Peixoto da Fonseca, than are dreamt of in your philosophy».
- Montexto
Eça de Queirós não contará, e muito menos David Mourão-Ferreira, Jorge de Sena, Urbano Tavares Rodrigues, mas vejo aqui em António Pereira de Figueiredo e Fr. Tomé de Jesus, por exemplo, toda poderosa/todas poderosas. São, decerto, mistérios da língua, mas não muito antigos, ao que parece.
E nos Sermões do P. António Vieira também se lê «toda poderosa», mas não ponho as mãos no lume, pois é numa edição de 1951 que o estou a ver.
Nos clássicos encontram-se também exemplos de «meio», advérbio, flexionado, como já se advertiu neste blogue, em que se corrigiu - e mal - um passo da «Guia de Casados», de D. Francisco Manuel de Melo, como Cândido de Figueiredo também condenou esse emprego nas suas «Lições de Lingiuagem», condenação por sua vez condenada - e bem - por José Leite de Vasconcelos nas «"Lições de Linguagem" do Sr. Cândido de Figueiredo», como se pode ver aqui ao lado.
Com efeito, a atracção explica essa prática reiterada a ponto constituir um facto da língua.
E, embora o correcto, seja dizer «meias meio feitas, portas meio abertas», os factos da língua autorizam «meias meias feitas, portas meias abertas».
Assim também, quando se diz «aquela rainha é todo poderosa ou todo-poderosa», «todo» é advérbio, equivalente a «totalmente», «de todo», e, portanto, mantendo-se invariável, respeita-se a sua natureza adverbial. Isto é a regra. O que precisa explicação é a variação «toda poderosa» ou «toda-poderosa», em que «toda» modifica como advérbio «poderosa»; essa explicação é a mesma que aceita «meios» e «meias» em vez de somente «meio».
Quando se diz: «a seara está toda loira», significa-se que «ela está completamente, totalmente loira», ou «loira de todo», e só por atracção do adjectivo («loira»), e/ou do nome adjectivado («seara»), o advérbio («todo») que o gradua ou modifica concorda com ele em género (e, sendo o caso, em número).
Por isso, cuido que era R. de Sá Nogueira que até nestes casos ensinava - e mal - que nunca se flexionasse o advérbio, caindo neste caso na mesma hipercorrecção de Cândido de Figueiredo a propósito de «meio», e que mereceu a este o justo quinau de Leite de Vasconcelos, já referido.
Concluindo:
- quando se diz: todo poderosa ou todo-poderosa ou todo-poderosas ou todo-poderosos, diz-se bem, seguindo-se a regra estrita da invariabilidade do advérbio;
- quando se diz: toda poderosa, toda-poderosa, todas poderosas, etc., está-se a sucumbir à atracção do adjectivo e até do género do nome, prática que de tão constante se tornou um facto da língua, como no caso de «meio», mas não só.
- Mont.
Olhe isto, Helder.
http://ricardosergiopantaneiro.blogspot.com/2011/03/o-feminino-todo-poderosa-nao-existe.html
Mas creio, sim, que o meu meio homónimo Fernando Venâncio Peixoto da Fonseca tinha razão.
[Conheci o senhor há dois anos, um antes de ele morrer. Durante dezenas de anos tínhamos tido curiosidade um pelo outro, com profissões e nomes tão semelhantes, sendo a um e a outro atribuídos erradamente livros e artigos, e parece que elogios. Falámo-nos uma tarde em sua casa, a Benfica. Fiquei com essa a menos atravessada.]
Nestas matérias não se crê nem se descrê. Estas matérias dirimem-se à luz da gramática e dos factos da língua.
- Mont.
Yes, Sir! Eu cubro-me de cinzas e visto-me de sarrapiheira. E nem assim aplacarei a vossa ira.
Nesta matérias - e em quase todas, - «sine ira et studio», caro Venâncio, «sine ira et studio».
- Montexto
Concluindo: afinal Peixoto não andou fora de água.
Irrepreensível conclusão! Mas é bem verdade: «non omnia possumus omnes».
- Mont.
Rodrigo de Sá Nogueira também diz o seguinte, no «Dicionário de Dificuldades e Erros de Linguagem», Clássica Editora, 3.ª ed., 1989, p. 249, 245, 359:
«MEIO – em bom português deve dizer-se: “ele ia ‘meio’ vestido”, “ela ia ‘meio’ vestida”, “eles iam ‘meio’ vestidos”, “elas iam ‘meio’ vestidas”. – “Meio” é ali um advérbio e, como tal, é uma forma invariável que equivale a “meiamente”, forma que se não usa em português.
É gramaticalmente errado, pois, dizer-se: “ela ia ‘meia’ vestida”, “eles iam ‘meio’ vestidos”, “elas iam ‘meias’ vestidas”.
O mesmo acontece com as formas adverbiais “TODO”, “MUITO”, “POUCO”.
No 1.º vol. das minhas “Questões de Linguagem”, pp. 227-228 (2.ª ed.), escrevi o seguinte: […] como se deve dizer: “meio desfalecida” ou “meia desfalecida”? A 1.ª construção é mais gramatical, visto que, sendo, “meio” advérbio, ele deve ser invariável. Em todo o caso, é corrente fazerem-se concordar aquelas duas palavras como se vê na 2.ª construção, por uma ATRACÇÃO SINTÁCTICA.
Camões disse: “Huns caem meios mortos…” (“Lus.”, III, 50). “Onde outros meios mortos…” (“Ibid.”, III, 113). “Esta meia escondida, que…” (“Ibid.”, X, 131).
Veja-se sobre o assunto Epifânio, “Luíadas”, nota a III, 50; Dr. Leite de Vasconcelos, ‘“As Lições de Linguagem’ do Sr. Cândido de Figueiredo”, pp. 10-11, 2.ª ed. [tendes ligação para elas aqui ao lado, no blogue; aí Leite de Vasconcelos, contra Cândido de Figueiredo, aceita, fundado nos exemplos mais clássicos e autorizados, que se diga não somente, por exemplo, «meio mortos», mas TAMBÉM «meios mortos» - notai bem: nem só «meio mortos» nem só «meios mortos», mas «meio mortos» E «meios mortos»], e “O Gralho Depenado”, p. 8 (3.ª ed.), que cita outros exemplos de clássicos.
É de notar na sua edição desastradíssima dos “Lusíadas”, Gomes de Amorim não emenda nem comenta os versos acima citados de III, 50, e X, 131; mas, acerca do III, 113, diz, ingenuamente: “Isto não pode ser de quem conhecia perfeitamente a língua: e, por isso, corrijo, certo de ser esta a lição do poeta.” A propósito desta infelicíssima edição, veja-se o opúsculo do Sr. Dr. Leite de Vasconcelos “O Texto dos Lusíadas”. (Cf. “Opúsculos”).
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MEIO VESTIDA – Diga-se, por exemplo: - “Aquela rapariga ia ‘meio’ vestida”, e não “meia vestida”. – Aquele “meio” é ali um advérbio, e os advérbios, como se sabe, são formas invariáveis: “Meio vestido”, “meio vestida”, “meio vestidos”, “meio vestidas”. – Aquele “meio” está ali por “meiamente”, que se não usa. – De igual modo e pelas mesmas razões, deve-se dizer: “TODO vestido”, “TODO vestida”, “TODO vestidos”, “TODO vestidas”. – Aquele “TODO”, como no caso de “meio”, está ali por “todamente”, que também se não usa.
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TODA VESTIDA DE AZUL. TODO VESTIDA DE AZUL – Não é correcta a 1.ª construção. Deve-se dizer: “TODO” (e não “TODA”) vestida de azul”. Aquele “TODO” NÃO ESTÁ ALI COMO ADJECTIVO, MAS SIM COMO ADVÉRBIO EQUIVALENTE A “TOTALMENTE” (“Todamente”, forma que se não usa): “Aquela senhora apareceu no baile TODO (isto é, “todamente”) vestida de azul.”»
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Portanto quem fez isso sabia o que fazia.
- Mont.
p. 250, em vez da 245, digo.
- Mont.
Todo vestido de azul podem achar-me. Porém, a sugerir eu, por suposição, à sr.ª embaixatriz para se arranjar «todo vestida» de azul ou lá na cor que seja, não me apanham. Pode arranjar-se toda vestida de azul que fica muito bem e eu assimilo. E a gramática também, tal como faz com o feminino de «embaixador» e sem se meter com quem seja casada a sr.ª embaixatriz ou se vai toda bem ou mal vestida.
Cumpts.
«Ad libitum.»
- Mont.
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