A besta do ortógrafo
«— Também a bésta, no II Concílio de Latrão» (O Homem do Turbante Verde, Mário de Carvalho. Lisboa: Editorial Caminho, 2011, p. 44). E lá vem, fatal, a nota a «bésta», assinada por MdC (o autor gostou da novíssima abreviatura do Banco de Portugal). Até eu sou favorável a acentos diferenciais, mas não exageremos, ou podemos ir demasiado longe. «O leitor reparou que o autor escreveu “bésta”, com aposição dum acento agudo. Quando era mais jovem, por timidez, em Os Alferes, deixou que lhe corrigissem o acento (dessa vez grave) que tinha colocado em “pègada” (assim) e que era imprescindível para que o vocábulo não se confundisse à primeira leitura com “pegada”, do verbo “pegar”. Desta vez, o autor quis mesmo desfazer a homofonia e a homografia, demarcando as heranças de “balista” e de “bestia”. Se a ortografia se ressentiu, pior para ela, e para os ortógrafos.
Os autores costumam ter algumas prerrogativas de invenção vocabular, desvio semântico e liberdade sintáctica. Não lhes está vedado, até, inventar sinais de pontuação, como fez Sterne e aqueloutro escritor, de que não me recordo agora o nome, que criou o ponto de indignação.
Fica aqui proclamado, no pequeno território deste conto, o direito de o escritor escolher a sua própria acentuação, como aquelas bandeiras que as nações colocam nas ilhotas, antes que se afundem.
À semelhança do que aconteceu logo a seguir a 1911, alguns autores fazem questão de manter a ortografia prévia ao acordo destes dias. Eu não exijo tanto, até mais ver. Quero é o acento em “bésta”.»
[Post 4767]
7 comentários:
«Bésta»?! Ora esta! É bestial.
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Mas atentemos em algo de maior momento, por implicar com a santa sintaxe:
«... como fez Sterne e aqueloutro escritor, de que não me recordo agora o nome, que criou o ponto de indignação.»
Conste, novíssimos, que em português se diz correctamente:
• ou: «... como fez Sterne e aqueloutro escritor, de cujo nome não me recordo agora, que criou o ponto de indignação»;
• ou: «... como fez Sterne e aqueloutro escritor, do nome do qual não me recordo agora, que criou o ponto de indignação.»
— Montexto
Invejo a língua castelhana por possuir um ponto de interrogação invertido no início de frase interrogativa; TODAS as línguas deviam ter algo semelhante.
Folgo por ver aqui transcrita a gozadíssima nota de rodapé do Mário de Carvalho. Ainda ontem a li, também, nos balanços do metro, em Amsterdão, óptimos para uma leitura atenta e repousada.
O conto em apreço, «Na terra dos Makalueles», é um mimo de versatilidade técnica, linguística e narrativa. É MdC no seu melhor. E o melhor dele, sabe-se, é o topo da literatura portuguesa desde há uns bons tempos.
Leiam, pois, O homem do turbante verde. Obrigado, Helder.
Paulo Araújo,
Talvez o Bichara ou o Malaka ainda se lembrem dessa. Até lá, olhe: é ir-se entretendo com ¡Hola!.
Prezado Fernando Venâncio,
Subscrevo, com aplauso, o que diz sobre o Mário de Carvalho, a sua obra e a «gozadíssima» nota do belíssimo conto que também li há poucos dias.
Assim se vê a diferença entre quem sabe ler e quem julga saber tudo. Chamar "novíssimo" a MdC é... (não digo, contenho-me)
Cum brutis non est luctandum.
— Mont.
Não se deve lutar com os brutos.
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