7.5.08

Disjunção da preposição e do artigo

Será, será

«Uma mulher de 44 anos entregou-se ontem à polícia, em Wenden/Olpe, na Alemanha, depois do filho, de 18 anos, ter descoberto os restos mortais dos seus três irmãos, três bebés que a mãe admite ter morto em três ocasiões separadas na década de 1980» («Alemã confessa ter morto três filhos», Global/24 Horas, 6.5.2008, p. 14).
A frase acima está correcta? Para o falante comum da língua, sim. Para as autoridades da língua, do ponto de vista da norma-padrão, não. Ou, pelo menos, oferecer-lhe-á matéria para alguma reflexão. Melhor: vou incluir-me, por um momento, nesse círculo restrito de falantes e antes direi: oferecer-nos-á.
Determina a Base XXXIV do Acordo Ortográfico de 1945: «Abolição do apóstrofo nas dissoluções gráficas de combinações da preposição de com formas do artigo definido, pronomes e advérbios, quando estas formas estão ligadas a uma construção de infinitivo. (Exemplo: Em virtude de os nossos pais serem bondosos.)» Logo, face à norma actual, a notícia acima devia estar redigida assim: «Uma mulher de 44 anos entregou-se ontem à polícia, em Wenden/Olpe, na Alemanha, depois de o filho, de 18 anos, ter descoberto os restos mortais dos seus três irmãos, três bebés que a mãe admite ter morto em três ocasiões separadas na década de 1980.» O falante médio fala e escreve desta maneira, com esta correcção? Na verdade, não, o que nos obriga a aprofundar mais a questão.
A este propósito, escreveu o Prof. Vasco Botelho de Amaral: «Disciplinadamente, ao anotar a base XXXIV do Acordo, exemplifiquei [em editorial de A Voz, n.º de 21 de Julho de 1945, quando se estava a preparar a Conferência Ortográfica]: “De e o ligam-se em do. Porém, se o artigo ou o pronome o se referem a um infinitivo seguinte, a regra actual manda separar a preposição do artigo ou do pronome. Portanto: 1. O livro do rapaz estragou-se com a chuva. 2. O prejuízo de o livro do rapaz se estragar com a chuva é grande.”
Isto, repito, expliquei eu disciplinadamente. Mas o que posso agora dizer, com objectividade de crítico, é diferente.
Na verdade, continua a ser obrigatório grafar:
“Em virtude de os nossos pais serem bondosos.”
Gramaticalmente, a disjunção do de e do os, em duas palavras, é compreensível. Mas na expressão natural há muita coisa que, não sendo gramatical, é idiomático.
A maior parte das pessoas cultas, tanto a falar como a escrever, ligam de os em dos, e escrevem: “Em virtude dos nossos pais serem bondosos.”
Ora, esta habitual ligação devia ser considerada correcta, pois, além de constituir uma irreprimível tendência de ligação fonética, é paralela, até, a um jeito tradicional (clássico e popular). Reparem os filólogos nisto:
Os clássicos, em vez de por o ver, escreviam “pelo ver”, apesar de hoje se ter por mais canónica a disjunção — por o ver. O povo dos nossos dias faz o mesmo. Paralelamente, quase toda a gente, apesar do que estipula a Lei (e eu afianço que tenho lido até em artigos de professores a infracção), liga a preposição de ao artigo o, a, os, as, mesmo naquelas frases em que a legal grafia (aliás, a legal sintaxe) determina de o, de a, de os, de as.
Erro! exclama-se… Será, será; mas é um erro tão frequente, tão teimoso, tão espontâneo, que amanhã a cláusula ortográfica abrigadora desta fusão será bem recebida por todos. É que o hábito está a forjar uma invencível forma de dicção e, consequentemente, de escrita social» (in Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português, Editorial Domingos Barreira, Porto, 1947, pp. 381-382).
Ficaria a nossa autoridade satisfeita com a correcção introduzida na frase? Não. Segundo a norma-padrão, usa-se a forma regular (ou fraca) dos particípios duplos na constituição dos tempos compostos da voz activa, ou seja, acompanhada dos auxiliares ter ou haver. Logo, a nossa autoridade exigiria ainda outra emenda: «Uma mulher de 44 anos entregou-se ontem à polícia, em Wenden/Olpe, na Alemanha, depois de o filho, de 18 anos, ter descoberto os restos mortais dos seus três irmãos, três bebés que a mãe admite ter matado em três ocasiões separadas na década de 1980.» Mais uma vez, contudo, se verifica que a tendência é contrária à norma, estando a cair em desuso a forma regular dos particípios de certos verbos, em que se incluir o verbo matar, acompanhada do verbo ter. Assim, é frequentíssimo ver ter pago, ter gasto, ter limpo, ter ganho, ter entregue, ter salvo, ter morto, ter aceite, etc. Todavia, como afirmam Maria Helena Mira Mateus e Esperança Cardeira na obra Norma e Variação, da colecção «O Essencial sobre Língua Portuguesa» (Caminho, 2007), a norma linguística não é democrática.

3 comentários:

Anónimo disse...

Não é democrática, a norma, e a mim soa-me muito mal a contracção introduzindo uma forma verbal no infinitivo. Ao arrepio da tendência, continuarei a grafar separados a preposição e o artigo. Causa mais surpresa nos interlocutores a manutenção da forma fraca do particípio com o auxiliar ter. Mas nós somos principalmente da língua em que nos criaram. E enquanto a norma nos não impuser de outro modo...
Gosto sempre de passar aqui :-) Aprendo sempre.

Helder Guégués disse...

É sempre um prazer ter a visita da Soledade, uma das minhas primeiras e melhores leitoras.
Apesar da apresentação teórica da questão, também respeito sempre a disjunção, que é, não apenas legal, mas confere elegância à frase.
Um abraço,
Helder

Anónimo disse...

quem pode me responder as seguintes perguntas, em Portugal ou no Portugal, em Minas gerais ou nas Minas Gerais?