21.8.06

A filosofia das maiúsculas

Com autorização do autor, transcrevo na íntegra uma crónica exemplar de Ruben de Carvalho, publicada no dia 17 do corrente no Diário de Notícias.

A minúscula hermenêutica

Na semana passada, a direcção do Público tomou uma iniciativa que corre sério risco de vir a figurar entre os mais bizarros episódios da imprensa portuguesa.
No final de um artigo de Isabel do Carmo (IC) criticando a política israelita em geral e o ataque ao Líbano em particular (de resto, em resposta a afirmações anteriores, visando a autora, da habitual colaboradora do jornal Ester Mucznik), estampou a gazeta a seguinte nota: “NR — O Público não alterou a grafia deste texto, designadamente o facto de a autora escrever Holocausto com caixa baixa.”
Comecemos por um pormenor secundário (sendo que nada é irrelevante neste disparate): o facto de se usar a expressão “caixa baixa”. Trata-se de uma formulação de perfil técnico, vinda do tempo da tipografia manual (da composição de chumbo, em que os tipos se distribuíam por compartimentos duma “caixa” de madeira), mas que persiste na área das artes gráficas, substituindo o comum “maiúscula” e “minúscula”: “caixa baixa” é inteiramente sinónimo desta última, “caixa alta” da primeira.
É evidente que o que subjaz à nota do Público é IC ter escrito holocausto e não Holocausto, ou seja, ter iniciado com letra “minúscula”: o jornal parece ter a concepção da imensa relevância da primeira letra como critério formal de valorização! Escrever “holocausto” é estar com o Hezbollah, grafar “Holocausto” é estar com Israel e a Administração Bush!... Mas porque é que se usa o elusivo “caixa baixa”?...
Daria pano para mangas reflectir sobre esta concepção litúrgica e sacralizante do uso da maiúscula, mas a nota coloca ainda outra questão: é evidente que a direcção do Público pretende tornar claro que não subscreve aquilo que no seu exclusivo entender significa o facto de IC ter utilizado minúscula. Ora, por esta ordem de razões, o jornal teria de estar constantemente a fazer notas semelhantes esclarecendo “não ter alterado a grafia” aos azedos e reaccionários insultos de Vasco Pulido Valente, às reflexões que levam Ester Mucznik a considerar terrorista toda a gente que não pensa como ela e por aí fora!
A vantagem, entretanto, é que fica a saber-se que para incomodar aquele jornal basta uma pequena entorse na ortografia e escrever a grandíssima ofensa de que se trata da Folhinha dirigida por josé manuel fernandes…

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