26.4.08

Formas de tratamento

Calinadas


      No Público, Nicolau Ferreira escreve sobre os funerais do futuro — «Os cemitérios do futuro vão estar vivos», é o título. O sumário previne, amigável e erroneamente: «No dia do vosso funeral não fiquem surpreendidos se houver pessoas a assistir a um concerto na esplanada do cemitério. A Europa espera por uma morte mais verde, tecnológica e personalizada. Vamos adiar a morte para ver o funeral de amanhã». Mortos e surpreendidos… Alguma figura de estilo, cogitará o revisor temeroso. Vamos, porém, por outro lado: «vosso» e «não fiquem».
      Já o Prof. Vasco Botelho de Amaral escrevia, a propósito das formas de tratamento, em 1947: «Considero que a língua portuguesa é rica demais quanto a formas, fórmulas, jeitos e processos de tratamento. Rica demais, porque a abundância de obstáculos não apenas se opõe aos estrangeiros dispostos a aprender a falar ou a escrever o nosso idioma, mas, inclusivamente, dificulta o acesso dos próprios Portugueses ao conhecimento seguro ou correcto da técnica do tratamento» (Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português, Editorial Domingos Barreira, Porto, 1947, pp. 540-557). Muito bem dito — até o duplo «demais». Ah, sim, não digam disparates. O texto vai por ali fora e lá está o que nos interessa: «Outro solecismo, frequente, por exemplo, nas locuções radiofónicas inclusivamente da nossa primeira estação, é a mistura do tratamento vocativo na 3.ª pessoa com pronomes na 2.ª:
      “Prezados ouvintes. Esperamos que o programa que lhes temos estado a transmitir seja do vosso agrado.”
      Quando se diz lhes, o tratamento realiza-se na 3.ª pessoa. Pois, esta mesma construção tem de manter-se, e, portanto, não se apresenta canonicamente o vosso, em lugar de seu. O programa que lhes temos estado a transmitir seja do seu agrado — será a única dicção correcta.»
      Na página 551, faz uma advertência: «2.as com 3.as = calinada». Não é bonito? Sessenta anos depois, o erro persiste. Tenho à minha frente duas obras: uma tradução e uma obra original portuguesa. Veja-se um exemplo da primeira: «— Mas agora entendem por que a casa é demasiado perigosa para vós? Têm de fazer com que a vossa mãe o entenda também. Têm de fazer com que ela queira ir-se embora dali. Se eles souberem que lá estão, pensarão que têm o livro e jamais vos deixarão em paz» (O Mapa Secreto. Livro 3 de As Crónicas de Spiderwick, de Tony DiTerlizzi e Holly Black, tradução de Isabel Gomes e revisão de Isabel Nunes. Editorial Presença, Lisboa, 3.ª ed., 2008, pp. 41-42). E um exemplo da segunda: «Lydia carregou na tecla que dizia “ler” e a mensagem apareceu escrita no ecrã: “Bem-vindos ao Planeta Branco. Convidamo-los a desembarcar, sem medo. As vossas vidas não correm perigo e a atmosfera é respirável» (O Planeta Branco, Miguel Sousa Tavares, revisão de Silvina Sousa. Lisboa: Oficina do Livro, 1.ª ed., 2005, pp. 61-62). Para quê continuar? Já perceberam.

3 comentários:

Ricardo disse...

É um erro tão frequente que seria mais correcto apelidar essa forma de concordância como consagrada pelo uso.
- "Ah! vocês querem levar outra sova no dominó como a de sábado passado? Perfeitamente, sou todo vosso..." E. de Queirós, Os Maias, cap. VII
- "Eu não vos quero começar já a impingir versos; mas enfim, vocês lembram-se de uma coisa que eu fiz a Seteais e de que por aí se gostou..." Id., cap. VIII

Quando a maioria da população (autores consagrados incluídos) usa determinada construção que vai contra a gramática, quem é que está mal? Os falantes ou a gramática?
Só podemos, estudiosos da língua, afirmar que ela é viva se a "deixarmos" mudar.
Note que me posiciono, normalmente, do lado dos 'puristas', que me insurjo contra "as quinhentas gramas" e outras...

Helder Guégués disse...

Não cruzamos, decerto, os braços, ou todos os erros podem vir a estar legitimados. Mas imagino que me toque mais a mim, como revisor e tradutor, fazê-lo do que a um académico como o Ricardo. De resto, quanto a Eça de Queirós, em cuja obra aprendi praticamente a ler, que não nos passe pela cabeça escrever o seu nome em frase ou parágrafo em que usemos a palavra «puristas». Vamos, pois, corrigindo, que algo ficará.

Ricardo disse...

Tem razão. Para a próxima faço a colheita em Camilo.
Abraço.