10.4.09

Sobre «oleão»

Podia ser

Em Junho de 2004, descobriram-se quase por acaso sepulturas colectivas no edifício da Academia das Ciências, instalada desde 1836 no Convento de Nossa Senhora de Jesus, da Ordem Terceira de S. Francisco. O estudo do achado feito até hoje permite afirmar que naquela época se recorreu ao canibalismo. Nos restos, até uma beata apareceu: «Botões de osso, fragmentos de vestuário da época, uma beata de cigarro de enrolar e até uma vértebra de cobra-rateira, capaz de crescer até dois metros de comprimento, foram encontrados nas sepulturas colectivas» («Testemunhos», texto de apoio ao texto «O sismo de 1755 contado pelos ossos das vítimas», Pedro Sousa Tavares, Diário de Notícias, 2.02.2009, p. 29). Este texto podia ser sobre estes erros: «Mas uma improvável soma de coincidências ditou que o primeiro ossoário conhecido de vítimas do terramoto surgisse na Academia de Ciências […].» Mas não. É certo que se escreve ossário ou ossuário*, mas chamou-me a atenção a beata. Recentemente, alguém me perguntou aqui como se devia grafar o termo que designa o recipiente para conter óleo alimentar para reciclagem: óleão ou oleão? Uns dias depois, vi este texto: «As beatas à porta do café do bairro são a sua preocupação recente. “Deviam criar o beatão pois as pessoas fumam na rua e sujam tudo”» («Tutor encarregado de manter o bairro limpo», Rita Carvalho, Diário de Notícias, 15.02.2009, p. 56). A criatividade linguística apoia-se aqui em termos semelhantes, como pilhão e vidrão, por exemplo, já registados nos dicionários gerais da língua. O primeiro a surgir foi vidrão e logo por analogia se construiu um paradigma de unidades linguísticas parafraseáveis por «recipiente de recolha de n para reciclagem», como beatão, embalão, livrão, metalão, oleão, papelão, rolhão… Ao oleão também se dá o nome quase impronunciável de ecoóleo.

* «
Eu tenho visto a pedra, desprendida/Da montanha, levar meia floresta/Na carreira — e não há-de esse granito/Colossal, que é o Povo, despregado/Por mãos do tempo, com trabalho imenso,/Ao rolar no declive da história/Esmagar, ao correr, os troncos secos/E o mirrado ossuário do passado?» («Secol’ si rinnuova», Odes Modernas, Antero de Quental).
«A presença de jazigos e um “columbarium” (conjunto de ossuários) atesta o uso da inumação e da incineração» (Guia Bíblico e Cultural da Terra Santa, João Duarte Lourenço. Revisão de Maria José Rodrigues. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2008, p. 126).

Actualização em 7.08.2009

«Os óleos alimentares usados para cozinhar vão passar a ser colocados no oleão, uma espécie de ecoponto que as autarquias terão de disponibilizar na via pública» («Óleo de fritar doméstico terá de ser posto no oleão», Rita Carvalho, Diário de Notícias, 6.08.2009, p. 16).

1 comentário:

Axel Pliopas disse...

Caríssimo colega de além-mar...

Acho interessantíssimo observar como a língua é plástica. Existem sempre discussões sobre o "certo" e o "errado", mas fato é que o mundo das normas é uma artificialidade morderna, e a linguagem tem uma natureza cujas regras orgânicas são anteriores a isso, não é mesmo? Sem que as instituições educacionais sejam fortes o bastante para conter nossos impulsos linguísticos, vamos, sem perceber, fazendo essa coisa tão humana que é perpetuar criando...