5.1.10

Acordo Ortográfico

Cada cabeça


      Desidério Murcho acaba de escrever um texto sobre o Acordo Ortográfico, rebatendo o que José Mário Costa escreveu recentemente. E afirma: «Para quê fazer ao mesmo tempo uma reforma, que obriga as pessoas a mudar a maneira como escrevem?» Não é uma pergunta retórica, pois responde: «A razão é só uma. Os linguistas que fizeram o texto do acordo mentem aos políticos, fazendo-os acreditar que só tirando o “p” do “excepto” é possível ter uma ortografia oficial única. Mas isto é mentira, pura e simplesmente» («Mentiras ortográficas», Crítica: blog de filosofia, 5.1.2010).
      Presumo que Desidério Murcho pretende significar, através do exemplo da queda da consoante muda, todas as mudanças consignadas pelo Acordo Ortográfico de 1990. Se assim for, é claro que não é mentira, pois só assim teremos, de facto, uma «ortografia oficial única». O que este filósofo afirma é que houve ao mesmo tempo uma reforma e um acordo, depreendendo-se que, a ser necessário alguma coisa, seria este último. O artigo único deste acordo estatuiria que todas as variantes da língua portuguesa seriam permitidas, não obrigando ninguém a reformar a maneira como escreve, antes concedendo a cada falante, de todo o espaço lusófono, a liberdade de adoptar qualquer das variantes. É isto? Se for, seria mesmo uma forma de alcançar os propósitos políticos do acordo actual, ainda que, na prática, legitimasse algum caos. Para mim, contudo, talvez precisássemos mais de uma reforma do que de um acordo.

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24 comentários:

Desidério Murcho disse...

Olá, Helder

Obrigado pelo comentário. Sim, é a segunda hipótese que formula. E não concordo que seria um caos. Não é um caos com a língua inglesa, que tem cerca de 20 variantes ortográficas. E repare que no actual acordo continua a haver inúmeros casos de palavras com grafia dupla. E qual é o problema da grafia dupla? Tanto se escreve “ouro” como “oiro”; por isso qual é o problema de tanto se poder escrever “excepto” como “exceto”? Nenhum.

Espero agora ter esclarecido a minha posição. Uma vez mais, obrigado pelo comentário.

Helder Guégués disse...

Caro Desidério,
Não vejo nos seus exemplos problema nenhum, e isto porque escolheu (ou só se lembrou) os mais benignos. Mas lembremo-nos, por exemplo, de acepção e aceção, a que temos de juntar acessão, entre muitos outros vocábulos. Continuo a crer que seria um caos.
Obrigado pelo seu comentário.

Venâncio disse...

Helder e Desidério, há mais futuros casos complicados:

interceção / intercessão

conceção / concessão

receção / recessão

retratar [C] / retratar

espetador [C] / espetador

corretor [C] / corretor


Eu sei que "espetador" não existe. Mas é assim que, a prazo, se lerá o novo... "espetador".

É uma minúscula amostra das consequências deste Acordo. O caos vem aí.

Helder Guégués disse...

Parece, Fernando, que é o caos que alguns não se importavam de ter — desde que não fosse imposto por uma lei. Ou, pelo menos, que não resultasse de um acordo. Assim, não gostam.

Desidério Murcho disse...

Espere aí, Helder. Agora com os seus comentários fiquei baralhado. Você protesta porque a nova ortografia é um caos? Concordo. A reforma ortográfica está mal feita.

Ou protesta que sem ortografias legisladas seria um caos? Discordo. Para haver norma não é preciso que a norma seja sancionada por lei.

Helder Guégués disse...

Caro Desidério,
Não apenas por essa razão, mas sobretudo por falta de atribuição legal a uma entidade normalizadora, não teremos nunca, e nunca tivemos, uma ortografia única sem ser através da lei. É claro que podia ser por lei sem acordo, e podia mesmo haver uma reforma sem acordo. Não pode é haver acordo ou reforma sem lei — na ausência da entidade normalizadora, Academia das Ciências ou outra, a que me referi acima. De qualquer modo, o poder normativo desta dimanará sempre da lei. Assim, o que digo — não há aqui protesto nenhum — é que me parece que alguns críticos do AO90 aceitariam mais facilmente as alterações consignadas nele se o veículo não fosse uma lei, o acordo. O que me pergunto então é para que serviria tanta liberdade, e lamento o esforço e meios que seriam despendidos na tarefa, pois a discricionariedade seria atribuída aos falantes, que adoptariam ou não as novas regras. Para este fim, mais valia estarmos sossegadinhos.

Desidério Murcho disse...

Agora compreendo melhor. Parece-me que muitas das pessoas que são contra ESTE AO, não são por princípio contra a legislação ortográfica. Eu sou a única ave rara contra tal coisa. Portanto, pode-se perfeitamente ser contra este AO, por estar mal feito, e ser favorável a outro AO ou a outra reforma ortográfica devidamente legislada.

Qual é a sua posição?

A minha posição é muito simples. Sou contra este AO e contra qualquer reforma ortográfica legislada. Porquê? Porque quando se preza a liberdade só se deve legislar quando não legislar seria previsivelmente pior. Ora bem, não há legislação lexical nem há legislação fonética nem gramatical. Não é preciso. E contudo não há anarquia. Então o que poderá fazer alguém pensar que sem a leizinha a malta desatava a escrever à toa? Na verdade, a malta já escreve à toa, e há leizinha.

Muito rapidamente, estes são os meus argumentos. O que pensa o Helder?

Helder Guégués disse...

A minha posição também é muito simples. Não sou contra este AO (mas apenas contra algumas normas, manifestamente mal concebidas, que ele contém) nem contra qualquer reforma ortográfica legislada. Porquê? Porque, prezando embora a liberdade, entendo que pior que legislar é não legislar, pois não confio na arbitrariedade que cada falante (e o conjunto dos falantes, o que é pior) acrescenta. Ora a verdade é que há alguma legislação lexical e fonética (a trazida pelos vocabulários resultantes da aplicação do AO45). Já a legislação gramatical não existe, mas, em contrapartida, o exercício da respectiva liberdade é muito restrita, permanecendo nos limites da compreensão. Se já se escreve à toa com uma lei (o AO45), a ausência de lei só poderia trazer caos.
Muito rapidamente, são estes os meus argumentos.

Desidério Murcho disse...

Obrigado, compreendo agora melhor a sua posição. Não concordo, pois entendo que não é a legislação ou a ausência dela que faz as pessoas escrever melhor ou pior, mas a qualidade do trabalho escolar e académico. A legislação não só não contribui para melhorar a ortografia, como oculta a razão de ser da má ortografia portuguesa. (Já agora, como raio se pode dizer “spelling” em português? É que “má ortografia” não faz literalmente sentido, porque a ortografia é a grafia correcta.)

Helder Guégués disse...

Não só não concordo com os seus argumentos, como não entendo a sua pertinência para a discussão. Nunca vi ninguém, pelo menos alguém sensato e responsável, atribuir à legislação (à «ortografia legislada», como escreve) o pouco domínio que se tem, que têm sobretudo os estudantes, da ortografia. Nessa discussão paralela, estamos, pelo menos neste ponto, de acordo: é a qualidade do trabalho escolar e académico que contribui para isso.

Anónimo disse...

"spelling" significa "soletrar"

Desidério Murcho disse...

Desculpe, Helder, não quis parecer obtuso — apesar de quem o é raramente o quer. O que você afirmou foi “entendo que pior que legislar é não legislar, pois não confio na arbitrariedade que cada falante (e o conjunto dos falantes, o que é pior) acrescenta”. Eu entendi que a arbitrariedade de cada falante para soletrar (obrigado, anónimo!) seria um problema que a legislação sobre a ortografia iria resolver. Mas agora afirma que não afirma que atribui à legislação o pouco domínio que os estudantes têm da ortografia. De modo que fiquei sinceramente sem perceber. Troquemos as coisas por miúdos. Você pensa que sem legislação ortográfica uns escreveriam nos jornais e livros certas palavras de uma maneira e outros de outra? É isso? Uns, mais inclinados para o Malaca, desatariam a escrever “ospital” e “tákci”, e outros, mais eruditos, escreveriam “pharmacia”?

Helder Guégués disse...

Há aqui alguma confusão: não há legislação alguma capaz de pôr os falantes a «soletrar», bem ou mal, e eu nunca afirmei tal. Não percebo assim o seu argumento e a sua sugestão de que eu dera antes a entender que achava que se devia à legislação o pouco domínio que os estudantes têm da ortografia. De qualquer modo, não posso deixar de denunciar o grande equívoco que é querer-se fazer crer que não aceitar o AO90 é sinónimo de liberdade. Então e como é que todos nós, os críticos deste acordo e os defensores, escrevemos? Como nos apetece — ou como no-lo impõe outro acordo, o de 1945? Portanto, não vejo na posição dos que rejeitam o acordo qualquer tentativa de preservar uma liberdade. Já tive oportunidade de lhe dizer qual é a minha posição sobre este acordo. Uma necessária reforma da ortografia, com acordo ou sem ele, serviria, quanto a mim, para tratar as lacunas, bem identificadas depois de décadas, do AO45 e para estabelecer regras sobre todo o léxico, e é imenso, que foi incorporado na língua de 1945 até à actualidade. Fui claro quanto à minha posição?

Desidério Murcho disse...

Peço desculpa pela incompreensão.

Vejamos: ou aceitamos ou não aceitamos que é correcto legislar sobre a ortografia. Se não aceitamos, então também não aceitamos a nova legislação. Quanto à antiga, pode-se defender a abolição da lei (tal como se aboliram muitas outras leis do estado novo). Se aceitamos, como é o seu caso, então pode-se discordar por estar mal feita, em alguns pormenores.

Quando se trata de luta política as pessoas querem discutir apenas questões muito concretas, porque só lhes interessa ganhar pontos. Abstracções não lhes interessam. Mas a mim interessam-me abstracções e não estou interessado em ganhar pontos, porque não estou num concurso televisivo nem no parlamento, o que vai dar mais ou menos à mesma coisa. E gostaria de conhecer um único argumento a favor da legislação ortográfica. Pensei erradamente que era para fazer as pessoas escrever melhor. Afinal não é, claro. Pensei também que fosse por ser necessário haver uma norma. Mas também não é porque muitas outras normas não são legisladas e existem, e a ortografia é legislada e mesmo assim a norma não é seguida. De modo que ainda não sei por que razão é uma boa ideia fazer leis sobre a ortografia. E o ónus da prova, no meu entender, está em quem quer fazer leis sobre algo e não em quem quer que não se faça tal coisa. Pelo menos, quando se preza a liberdade, pois nesse caso o princípio irrecusável é que só devemos legislar quando a ausência de legislação seria previsivelmente pior. Penso eu.

Helder Guégués disse...

E o Desidério, que é claramente contra uma nova legislação ortográfica, defende que se deve abolir a lei que estatuiu a ortografia que (se) usa actualmente? E fica com quê, se preza a certeza do que escreve? Preza como eu, que vivo disso, e gosta de saber, como escreveu recentemente, se o que está a ler está correctamente escrito ou não. Quer abdicar dessa certeza ou é uma mera questão abstracta?
Ainda a propósito da abstracção. Afirma que a ortografia é legislada e mesmo assim a norma não é seguida, o que, a seu ver, torna desnecessária qualquer lei sobre a ortografia. Infeliz argumento, na minha opinião, pois pode dizer-se o mesmo em relação a normas bem mais ponderosas, como as relativas à defesa vida humana, e, no entanto, quem afirma que a lei que criminaliza o homicídio é desnecessária com o argumento de que não os evita, pois todos os dias se comete aquele crime?
Nunca uma lei sobre a ortografia ensinará as pessoas a escrever — apenas dá a certeza, a quem quer escrever bem, de como o fazer. É uma norma jurídica imperfeita: ninguém será perseguido penalmente por escrever como bem lhe apetecer.

Desidério Murcho disse...

Oops, concordo que o argumento de que com ou sem legislação as pessoas escrevem mal é um mau argumento.

Mas não concordo que é preciso haver lei para haver norma. É esta a questão fundamental. Há muitas normas que não precisam de ser legisladas. Esta é uma delas. O que precisamos é de bons dicionários, prontuários, gramáticas — e, sobretudo, de bom ensino e de gente que preza a escrita precisa.

Penso que a confusão é mesmo esta, Helder. Você pensa que só com legislação há norma. E eu argumento que há normas sem legislação. E que em alguns casos legislar normas torna as normas piores.

Esclarecendo: se não houver legislação, a norma ortográfica emerge naturalmente do trabalho de linguistas, escritores, revisores, académicos e outros profissionais da língua, acabando por se generalizar as alternativas que parecem melhor às pessoas que usam a língua com cuidado. Com a legislação acontece sistematicamente isto: não são os profissionais mais competentes que mandam na língua, mas sim os que estão próximos do poder. Daí haver tantos erros no texto da actual reforma ortográfica.

Desidério Murcho disse...

Respondendo agora à sua pergunta: se abolirmos a lei ortográfica, ficamos com o quê? Com o costume. Com o facto de os livros já estarem escritos de certa maneira. O que serve como norma, mas ao mesmo tempo é mais flexível, pois se muitas pessoas considerarem melhor escrever algo de um certo modo, uma nova norma acaba por emergir naturalmente.

Concluindo: para ter a certeza de que estou a escrever bem não preciso de lei. Preciso apenas de norma.

Anónimo disse...

Cem ler o teisto de Desidério Murxo i lançandu-me nesta discussão com cunhecimento limitado do AO (que no entanto por diversas vezes se provou superior ao conhecimentos de alguns críticos), devo dizer que num intendo esta súbita ansiedade pela liberdade ortugráfica.
A ortografia e a gramática sempre seguiram normas ou leis e só assim é possível ensinar língua – o que não é o mesmo que aprende-la. O facto que esta não seja aprendida não justifica que não exista uma norma que se ensine. Deixando a liberdade a cada um de escrever como quer não resolve o problema da maior ou pior qualidade da escrita, mas criaria diversos desafios à finalidade última da escrita – comunicar. A liberdade de escrever mal mantém-se, a liberdade criativa de utilizar ortografias fora da norma mantém-se. Eu puosso iscreber duma certa maneira pra imitar'a prunúncia du Puarto, mas arrisco-me a que o leitor que nunca ouviu essa pronúncia não faça ideia de que raio se esta a passar - um risco meu que posso assumir. Mas a norma deve existir para ser ensinada e para podermos conscientemente desviar dela. No entanto, nos exames, na legislação, nos tribunais, nos relatórios médicos, a norma deve não só existir como ser respeitada.
Os paralelos com o inglês e com outras línguas são sempre tidos como exemplos da flexibilidade que as línguas podem manter. E de facto o AO mantém certas flexibilidades criando ao mesmo tempo uma norma única, para todos – uma norma com flexibilidade. Um exemplo em inglês dos Estados Unidos a palavra organizar é unicamente escrita “organize”. No entanto, em inglês do Reino Unido a grafia “organise” também é aceite e preferida por algumas instituições. Não há uma norma para ambos os países mas há um país mais flexível que o outro. Alguns ingleses pensam que quem escrever "organize" se submete à invasão da cultura americana - principalmente porque não há um acordo em que os americanos aceitam a grafia dos ingleses. Neste caso, os ingleses não se apercebem que evitando a cultura americana, se submetem à cultura francesa.
http://en.wikipedia.org/wiki/American_and_British_English_spelling_differences

A ironia parece ser que os críticos criticam o AO em geral porque mata a flexibilidade, e em particular porque mantém a flexibilidade.

NA

Helder Guégués disse...

Desidério, não penso nem afirmei (e ficar-me-ia mal, dada a minha formação jurídica) que só com legislação há norma. Mostrei foi que não podemos rejeitar, como princípio, qualquer legislação ortográfica, pois que escrevemos segundo uma norma ortográfica legislada. Quando afirma que para escrever bem não precisa de lei mas somente de norma, não pode esquecer-se de que esta norma sobre que quer fundar toda a certeza foi estabelecida por lei. Digamos, então, que, pelo menos, uma norma ortográfica legislada não é má por natureza, antes se deve aferir em cada caso do seu acerto.

Desidério Murcho disse...

A questão é toda só esta: que uma norma não tem de estar legislada para ser uma norma ensinável, estável e que desempenhe o seu papel de norma.

Do facto de hoje termos uma lei que estabelece a norma não se segue que essa lei é defensável. Não é. Mas agora já nada se pode fazer, excepto suspendê-la; mas isso seria apenas simbólico, pois a norma não iria mudar por causa disso. A perversão de legislar ortografias é que no momento em que nova lei é introduzida controla-se artificialmente a ortografia, não pelas melhores razões linguísticas, mas por força do poder político.

A lei ortográfica é o argumento de autoridade política de quem não tem autoridade linguística.

As normas linguísticas genuínas, e não artificialmente empurradas pelas goelas abaixo de todos nós pela força da lei, são aquelas que evoluem naturalmente dos estudos e propostas dos linguistas em dicionários, prontuários, publicações académicas, serviços de consultoria junto de jornais e da administração pública, etc. Às claras. Em público. E sendo sufragadas essas propostas pelo uso que as pessoas decidem livremente fazer. Elas decidem então pôr ou não o hífen aqui ou ali, que uns linguistas defendem e outros criticam. Sem dúvida que isto é muito mais bonito, mais democrático, mais livre. E de modo algum põe em causa a norma ortográfica enquanto norma — não significa que cada qual passará a escrever à balda, como um dos comentadores erradamente sugeriu. Pensar que sem lei não há norma ortográfica, como esse comentador pensa ou sugere, é ter a cabeça completamente enterrada no mais serôdio salazarismo. O que aliás é compatível com os argumentos colonialistas e xenófobos a favor do AO — que evidentemente não são os do Helder, pois se fossem eu não estaria aqui.

Helder Guégués disse...

Em termos técnico-jurídicos (tratasse-se de uma questão matemática, e não deixaríamos de exigir-nos mutuamente cálculos rigorosos), se a lei ortográfica fosse revogada, não ficaríamos com o costume, antes se dava a repristinação da lei ortográfica anterior. Uma lei, mais uma vez. Contudo, dada a relevância social da questão, o Estado não podia deixar de, na própria norma revogatória ou em lei à parte, indicar à Função Pública, incluindo o sector educativo e de publicações oficiais, que norma devia seguir. Caso contrário, muitos falantes adquiririam a convicção de que poderiam escrever como bem lhes apetecesse. Alguns escreveriam, por acharem que estava mais próximo da etimologia, como se lê no excerto de As Cidades e as Serras — que o Desidério afirmou que só as pessoas com formação escolar superior compreenderiam. A médio-longo prazo, seria o caos.
E já concordei antes que não precisaríamos de uma lei ortográfica para termos norma, se a realidade portuguesa fosse outra.

Desidério Murcho disse...

Bom, essa é uma previsão empírica. Tem dados para ela? Eu tenho uma previsão empírica diferente. Também não tenho dados para ela. Mas parece-me que as pessoas continuariam a escrever segundo a ortografia que aprenderam e que vêem nas gramáticas e dicionários, se a lei fosse abolida.

Helder Guégués disse...

Empírica ou não, todas as previsões são falíveis. Como também não tem dados, porém, não vale a pena falarmos delas. Certo é, nessa circunstância, que o que as pessoas aprenderam e vêem nos dicionários e gramáticas resultara de uma imposição legal.

Desidério Murcho disse...

Uma norma ortográfica sempre existirá, com ou sem lei. Se não se tivesse feito a reforma ortográfica republicana, continuar-se-ia a escrever sem lei, mas com norma. Uma vez feitas essa e outras reformas ortográficas, as pessoas passaram a reconhecer outra norma.

Quem defende que nenhuma legislação ortográfica é legítima não está obrigado a aceitar que a abolição da actual lei implicaria abandonar a actual norma: uma coisa não implica a outra. A norma, a partir do momento em que foi estabelecida, está estabelecida, e mesmo que tenha erradamente sido estabelecida por lei, está estabelecida. Quem quer mudar normas não sou eu, é preciso não o esquecer, mas quem quer impor outra vez numa nova norma por via legislativa.

Portanto, quem rejeita leis ortográfica não está obrigado a rejeitar as normas que foram impostas no passado por essas leis. O que a pessoa rejeita é que se faça outra vez a mesma asneira de sabor napoleónico: estabelecer uma nova norma legislativamente. A pessoa não rejeita a norma que entretanto foi consagrada pelo uso.

Eis uma analogia, para ver se isto fica claro de uma vez por todas. O actual território português a sul do Tejo durante séculos era território árabe. Sangue, conquistas, etc., permitiram expulsar os árabes. Uma pessoa que considere este tipo de actividades de conquista errada não está obrigada a defender que agora devemos restituir esse território aos árabes. Está apenas obrigada a defender que não devemos voltar a fazer a mesma coisa — conquistando território à Galiza, por exemplo. Mas que foi feito, está feito.

Finalmente, do facto de todas as previsões serem falíveis não se segue que todas são igualmente plausíveis. A sua previsão parece-me implausível à partida, ainda que não tenha dados empíricos para o sustentar. Isto porque as pessoas precisam de uma razão forte para mudar de ortografia; à partida, escrevem como aprenderam e como vêem escrito.