26.5.10

Tempos verbais

Ficha Limpa


      O leitor Paulo Araujo chamou-me a atenção para uma polémica que tem todo o interesse para nós, pois centra-se essencialmente numa questão linguística. Um projecto de lei, de iniciativa popular, chamado Ficha Limpa, pretende impedir a candidatura de políticos condenados em segunda instância judicial. Tudo teve origem em 2008, quando a Associação Brasileira de Magistrados (ABM) tornou pública uma lista com os candidatos com «ficha suja». Mais recentemente, o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) desencadeou o processo depois de ter obtido a assinatura de mais de 1,5 milhão de cidadãos. O texto-base do projecto já foi aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados. Entretanto, o senador Francisco Dornelles introduziu umas emendas que podem desvirtuar o sentido da lei. A alteração é de tempos verbais e não de verbos: em vez de se estatuir «os que tenham sido condenados», passou a ser «os que forem condenados».
      Não há gramático ou linguista brasileiro que não tenha sido ouvido pelos meios de comunicação a propósito da questão. De um artigo da jornalista Alessandra Duarte (que podem ler na íntegra clicando na imagem acima), na edição de ontem do jornal O Globo, extraio a opinião de Evanildo Bechara, com a qual concordo inteiramente: «Imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), o filólogo Evanildo Bechara afirma que, enquanto o tempo verbal “tenham sido” é mais claro e aponta para uma só categoria — aqueles que já foram condenados no passado —, a expressão “os que forem condenados” dá margem a duas interpretações: — Uma dessas interpretações abrange só os que vierem a ser condenados. A outra, porém, abrange todos aqueles na condição de condenados, o que, portanto, inclui os que já tiveram condenações. Do meu ponto de vista, essa segunda interpretação é a mais próxima do espírito inicial do projeto pensado pela sociedade. E eu escolho o que está mais próximo do espírito do projeto — analisa Bechara.»
      Devo, no entanto, realçar que me parece um pouco contrafeito — e, em qualquer caso, a denotar uma deficiente técnica legislativa — o uso do futuro do conjuntivo no texto da lei, que, por uma interpretação restrita, significará somente os que vierem a ser condenados, diminuindo assim o alcance da norma.
      Resta agora saber se Lula da Silva vai sancionar ou vetar a lei. O caminho mais sensato seria optar pelo veto, dado o perigo real de subversão do espírito da lei.

[Post 3504]

4 comentários:

Paulo Araujo disse...

O que lhe parece uma deficiente técnica legislativa, em verdade foi uma inserção proposital, no Senado, com o intuito de excluir as 'fichas sujas' que estão exercendo mandato e desejam se reeleger (para continuarem sujando suas fichas). Não foi por outro motivo, que o projeto foi aprovado, no Senado, por unanimidade, a toque de caixa.

Venâncio disse...

É tão frustrante a luta contra a corrupção! Suspeito que o episódio se passaria igualzinho em Portugal.

Teria ficado bem a Bechara dizer simplesmente: «A redação "os que tenham sido condenados" é que é inequívoca, e portanto deve ser reposta».

Menos académico, e mais frontal.

Anónimo disse...

Não existe um dispositivo legal que só faz retroagir a lei quando em benefício do réu? Por que então essa novela toda? Sei que a política está cheia de salafrários, mas ainda assim não me parece certo mudar a regra do jogo no meio do jogo. Que seja para os futuros condenados, portanto. Azar, se não entraram com a iniciativa popular antes.


Quanto à questão linguística, parece-me que o professor do final da matéria passou atestado de incompetência.

Helder Guégués disse...

Caro Anónimo,
A questão não tem nada que ver com a retroactividade da lei.