12.9.10

Alguém/ninguém

Sem tirar nem pôr


      D. Francisco Manuel de Melo (1608–1666) escreveu, nas Cartas Familiares, «sem que ninguém lho ache», mas o revisor antibrasileiro acha que «sem que ninguém» é erro crasso e que se deve dizer e escrever «sem que alguém». Em épocas mais recuadas, o uso da dupla negativa era talvez mais vulgar, com recurso ao advérbio «não» ou, como no caso acima, à preposição «sem», mas a língua portuguesa continua a ser, porque o é matricialmente, uma língua de dupla negação.

[Post 3869]

6 comentários:

Anónimo disse...

Para o revisor antibrasilieiro, um gramático brasileiro:
«"Mas assim, nenhuma de quantas (subent. "espadas")ele fez, não acertou a pôr-lhe a ponta e o fio como esta os tem." [...] Nota-se no trecho do jesuíta Vieira a transposição da frase para colocar no princípio da oração o "nenhuma", no qual está toda a força. [...] Aumenta-se a força ajuntando outra negação "não", de si não necessária, mas de castiço emprego. Porque o amontoar de negações para evitar dúvidas ou para maior reforço é coisa portuguesíssima. A nossa língua antiga empregava a negação ainda quando antes do verbo já há um elemento negativo: "nenhum não ousa entrar, ninguém não o saberia, ninguém não ousava, ninguém não tem valia, nada não nos devem." Actualmente, neste caso, não se usa a negação: "ela nada me tem contado, ninguém o viu, nada vi", ou então: "não vi nada, não quero nada, não conheço ninguém, não o viu ninguém, não queria nunca." E já se vê que as negações, quando se reduplicam, têm no português uma significação inteiramente contrária à que tinham na língua latina. Nesta, duas negações afirmam; em português confirmam a negação. O português com duas negações nega com mais energia, e muitas das frases de antanho em que sobeja a partícula segundo o uso actual da língua, podem, de acordo com o mesmo uso, admiti-la mediante uma leve inversão. Exemplo: Na sua Eufrosina", pág. 146 (Lisboa, 1786)escreveu Jorge Ferreira: "E ninguém não diga desta água não beberei." Agora diríamos invertendo a ordem: "Não diga ninguém desta água não beberei"», ensina Mário Barreto, nos «Fatos da Língua Portuguesa», Presença, Rio de Janeiro, 1982, 3.ª edição, págs. 63-65, que explica ainda mais subtilezas deste emprego, ajuntando v. g. em nota: «Sem embargo, as duas negações afirmam quando os prefixos de negação IN, DES, A... se juntam a outra palavra negativa: NÃO INDOUTO = douto, NÃO DESCONHEÇO = conheço, NADA ANORMAL = mui normal, NÃO SEM RAZÃO = com razão, SEM DESCONHECER = conhecendo», etc.
E, se o revisor antibrasileiro perlustrar as obras de Machado de Assis, por exemplo «Dom Casmurro» ou «Memórias Póstumas de Brás Cubas», lá topará giros como «nunca jamais ninguém viu ...», ou até, se bem me lembro, «nunca jamais ninguém não viu ...».
Antes de emendar um clássico, e mormente um clássico da craveira do autor da «Carta de Guia», é melhor um revisor, ou quem quer que seja, pensar duas vezes.
- Montexto

Anónimo disse...

Para o revisor antibrasilieiro, um gramático brasileiro (II):
E, se o revisor antibrasileiro perlustrar as obras de Machado de Assis, por exemplo «Dom Casmurro» ou «Memórias Póstumas de Brás Cubas», lá topará giros como «nunca jamais ninguém viu ...», ou até, se bem me lembro, «nunca jamais ninguém não viu ...».
Antes de emendar um clássico, e mormente um clássico da craveira do autor da «Carta de Guia», é melhor um revisor, ou quem quer que seja, pensar duas vezes.
- Montexto

Venâncio disse...

A sequência sem que ninguém figura no Corpus do Português de Davies/Ferreira 71 vezes no séc. XX e 59 vezes no séc. XIX (Fialho, Herculano, Machado, Euclides, Aluísio, Alencar, etc., etc.).

Diga-me, Helder: o «revisor antibrasileiro» é pessoa de carne e osso ou uma cultíssima peta sua?

Helder Guégués disse...

Existe. Está ali à minha frente.

R.A, disse...

Diga-me, Helder: o revisor antibrasileiro lê o "Assim Mesmo"? Ou é infoexcluído?

Helder Guégués disse...

Julgo que até já aqui deixou um comentário, mas como posso ter a certeza?