25.9.10

Dois-pontos repetidos

Bom exemplo, e talvez a tempo


      Já uma vez me perguntaram se podia haver dois sinais de dois-pontos seguidos. Respondi que sim, mas não tinha à mão uma citação de um autor credível. Ei-la agora: «Esta fisionomia fez-me corar. Olhei a fisionomia dele: era sempre a mesma fisionomia: severa e fria, triste e um não sei quê de desprezadora» (Mistérios de Lisboa, 1.º vol., Camilo Castelo Branco. Fixação de texto por Laura Arminda Bandeira Ferreira. Nota preliminar de Alexandre Cabral. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 10.ª ed., conforme a 5.ª, última revista pelo autor e em confronto com a 1.ª, 1969, p. 37).
      Podia perguntar-se se a 1.ª edição já apresentava esta pontuação, mas esta edição da Parceria A. M. Pereira, com fixação de texto de Laura Arminda Bandeira Ferreira, dá-nos algumas garantias. Passados quarenta e um anos, só poria hífenes, porque é um substantivo, em «não-sei-quê»: coisa indefinida, incerta ou duvidosa.

[Post 3911]

4 comentários:

Paulo Araujo disse...

Que dias ha que n’alma me tem po∫to
Hum não sei que, que na∫ce não ∫ei onde,
Vem não sei como, & doe não ∫ei porque.
Camões, Rythmas, 1595.

Anónimo disse...

Em Eça encontram-se mais amiúde exemplos desse tipo de pontuação do que em Camilo.
Mas também em Garrett: «É uma hora da tarde: estamos a salvo: ancorámos na angra de Portland» («Narrativas e Lendas», Editorial Estampa, 1979, p.54, com prefácio e notas de Augusto da Costa Dias).
E, já folheando Vieira, se nos depararam não poucos casos. Dois exemplos, um dos quais até com três aplicações de dois pontos seguidas: «Sim, e muito em seu tempo: porque a mesma fermosura, que viam, era profecia da morte, em que falavam: "Loquebantur de excessu": de um excesso arguíam o outro: que quem excedia tanto na fermosura, não podia durar muito na vida», (p. 208); «Uma diferença, que desconsolava muita a Madalena na sepultura de Cristo, é a que eu considero nesta: nas outras sepulturas dizem os epitáfios por fora: "Hic jacet": Aqui jaz; na sepultura de Cristo diziam as vozes de dentro: "Non est hic": Não está aqui» (p. 236 da «Morte e Sepultura, Oratória Fúnebre», Figueirinhas, 2009, com introdução, selecção, organização e notas de João Francisco Marques).

Anónimo disse...

Reparando melhor, os dois pontos aparecem três vezes seguidas não num, mas nos dois exemplos de Vieira.
- Montexto

Anónimo disse...

Aliás, pontuação comum a outras línguas:
- «Brutus, I do observe you now of late: /I have not from your eyes that gentleness /And show of love as I was Wont to love: /You bear too stubborn and too strange a hand /Over your friend that loves you» (Shakespeare, «The Tragedy of Julius Caesar», I, 2, p. 44, Fernandes, Lisboa, colecção bilingue, 2.ª edição, revista, com tradução em verso e prosa, conforme o original, introdução e anotações por Luiz Cardim).
- «Qui pense finement et s'exprime avec grâce, /Fait tout passer; car tout passe: /Je l'ais cent fois éprouvé: /Quand le mot est bien trouvé, /Le sexe, en sa faveur, à la chose pardonne» (La Fontaine, «Comment l'esprit vient aux filles», "Le Tableau", Gallimard, Paris, 2009, Col. Folio, n.º 4844, p. 125).