A crónica de Rui Tavares na edição de hoje do Público anda quase toda à volta das novas regras ortográficas: «Escrever é agora para mim um exercício de ouvido. O cérebro procura lembrar-se de como a língua pronuncia aquela palavra, tenta ouvi-la dentro da cabeça, para depois a poder escrever. Eu digo aquele “c” em espectador e aquele “p” em conceptual? Se sim, escrevo-o [o autor escreveu antes ambas as palavras com a consoante muda]. Se não, omito-o. “Nocturno” tornou-se “noturno” por um “c” que na pronúncia se extinguiu há muito tempo atrás. Se tenho saudades de “nocturno”? Sim. Mas gosto já de “noturno”. Nocturno é soturno; noturno é sensual; e gosto mais ainda de “noiturno”, uma palavra que talvez nunca tenha existido, nem sei se existirá um dia» («Noturno», Rui Tavares, Público, 27.10.2010, p. 39). O cronista, acossado por um jornal antiacordo, lamenta-se: «O PÚBLICO decidiu acrescentar mais uma linha ao final destas crónicas. Já viram o tamanho daquele penduricalho? Tem lá a minha vocação, a profissão, o cargo, como lá cheguei, em que condições, a ortografia que uso e porquê. Uff. Cada vez mais coisas, como os contratos de letra miudinha. Um dia crescerá, crescerá, e eu próprio desaparecerei.» Eis o penduricalho: «Historiador. Deputado independente ao Parlamento Europeu pelo BE (http://twitter.com/ruitavares); a pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico.» A ortografia que usa está lá, já o porquê não o descortino.
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6 comentários:
Mais grave do que o «c» ou a falta dele em «nocturno», palavra que em qualquer caso nos deixa às escuras, parece-me o «atrás» em «há muito tempo atrás», que nos deixa com palavras a mais, e portanto escusadas, pois nada acrescenta à expressão «há muito tempo», aliás como tem sido advertido inúmeras vezes em prontuários e obras afins.
- Montexto
Se "noiturno" não existia, aí o temos, prontinho. No melhor estilo Mia Couto de inventar palavras. Gostei. Só é preciso cuidar para usá-lo em contextos bem específicos. Já o resto da crônica foi um enfado só.
A razão pode estar lá, se bem que implícita. Talvez seja uma imposição do BE. Da qual nem os "independentes" se livram.
Agora cada escritor ou escrevinhador tem ideias tão originais e subtis que já não bastam as palavras da tribo (como diria o outro) para as exprimir; vê-se na necessidade instante de inventar outras lá muito da sua especial dilecção.
Quanto aos penduricalhos, é bem certo que ultimamente tendem a crescer de uma forma que podemos tachar - para arejar o dicionário, mas sem quebra da verdade - de teratológica.
- Montexto
Agora o digníssimo Montexto vai condenar o neologismo como se fosse o oitavo pecado capital. Eu recomendaria a leitura de Guimarães Rosa, Mia Couto e José Cândido de Carvalho, para citar apenas três que muito se utilizaram desse recurso para alcançar resultados fascinantes... Mas é bem possível que, sendo todos dos odiosos séculos XX e XXI, ao distinto colega não apeteçam.
Recomendar por recomendar, recomendaria Graciliano Ramos, João de Araújo Correia, Nélson Rodrigues, Millôr Fernandes e António de Sousa Homem, seja lá quem ele for, porque o livro mais bem escrito, e por isso melhor, dado a lume lume em Portugal nos últimos tempos vem assinado com este nome.
Realmente, por improvável que pareça, até nesses «odiosos séculos», há gente recomendável.
- Montexto
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