10.10.10

«Empregue/empregado»

Ah, isso


      Os correctores, automáticos, deram agora em expungir de todos os textos qualquer «empregue» que tenha tido a veleidade de existir. Automáticos, sem ponderação. Em vez de estudarem, põem-se, quase lúbricos, a espreitar por cima do ombro dos outros (sim: aprendemos muito com os outros, mas não assim), e depois sai asneira. «Aliás, a expressão tantas vezes empregue...».

[Post 3955]

10 comentários:

Anónimo disse...

O FLiP 7 aceitou sem gemer o "empregue". Todavia não conhece o "expungir"... mas, curiosamente, o Dicionário Priberam (do grupo FLiP) conhece a palavra.

Helder Guégués disse...

Bem, tinha de aceitar, não é assim?, pois também é uma forma verbal. (A propósito disto, um dia trarei aqui vários exemplos aberrantes de quem confia cegamente no FLIP.) E na frase, bem podem anunciar e desejar o contrário, mas esse corrector é muito mais ortográfico que sintáctico, nada iria assinalar. E é a sintaxe que ordena o caos. (E pensar que vai para dez anos um ignorante do IEFP me disse, em conversa informal, que revisor era profissão com os dias — e afirmava-o como se fosse acontecer logo na semana seguinte — contados.)

Anónimo disse...

Realmente o uso de «empregue» por «empregado», assim como «encarregue» por «encarregado», está a grassar furiosamente, e muita e boa gente é bem capaz de se boquiabrir se alguém tiver a pachorra de lhe explicar que tal prática não é português, ou pelo menos não é bom português.
Conste pois mais uma vez que o verbo «empregar» tem no particípio passado só a forma «empregado», e não também a forma «empregue». No mesmo caso está «encarregar», cujo particípio passado é só «encarregado», e não também «encarregue».
O verbo «entregar» é que tem no particípio «entregado» (forma regular, usada nos tempos compostos da voz activa: «eu tinha entregado o livro»), e também «entregue» (forma irregular, usada nos tempos compostos da voz passiva: «o livro foi entregue por mim»).
E já se deixa ver de onde manou a confusão, aliás quase de geração espontânea nesta idade confusionista.
Apesar disso, vão-se ouvindo vozes a pôr os pontos nos is, qual a de Dália Dias, no livrinho «Em Português Claro», cuido que da Porto Editora, p. 125 (o particípio passado «empregue» não existe), e Lauro Portugal, na «Gente Famosa também Dá Pontapés na Gramática», Roma Editora, 2004, p. 197 (milhões de euros serão empregados, e não empregues).
Mas a confusão é já tamanha que as forma «empregue», a par de «empregado», está registada no «Prontuário da Língua Portuguesa», de F. Xavier Roberto e Luís de Sousa, Editorial Século, 1974, p. 242 (mas não no de Neves Reis e Magnus Bergström, 8.ª edição, 141); e no «Prontuário - Erros Corrigidos de Português», de D'Silvas Filho (Texto Editores, 2000), também consultor do Ciberdúvidas e sócio da Sociedade da Língua Portuguesa, a confusão agrava-se, se possível, pois lê-se (p. 164): «RG [Rebelo Gonçalves] aceita os particípios irregulares "empregue" e "entregue", mas PF recomenda que se escreva "tem/é empregado, tem/é entregado" (o autor não vê razão para não aceitar: 'isto está bem entregue'.»
E nós tão-pouco, pela razão suficiente de que o verbo «entregar» tem duas formas no particípio: «entregado» e «entregue», ao invés do verbo «empregar», que só tem a forma «empregado».
Mas até já em livros de professores universitários e linguistas se usa sistematicamente «empregue» por «empregado». Seja exemplo «Português para Todos - A Gramática na Comunicação», de Helena Mateus Montenegro, João Azevedo Editor, 2005: «Verificam-se várias insuficiências quanto à propriedade ou justeza semântica e lexical com que as palavras são empregues» (p. 29; pode crer, Sr.ª Doutora, pode crer!); «Quando empregue em frases interrogativas, utiliza-se "por que" [...]» (p. 38); «Questionar o modo como foram empregues esses meios será útil» (p. 67); «a forma pronominal "você", embora possa ser empregue num tratamento formal ou de cortesia [...]» (p. 90); etc., etc. (Dito seja de passagem que nesta obra também ocorrem primores como «No entanto, se se optam por fases pontuadas» (p. 28), «Com as frases complexas, deverá seguir-se as regras aplicadas para as formas verbais simples» (p. 82), «Leva-me a concluir da necessidade de se praticar "fichas de escrita" sobre esta matéria no Ensino Básico e Secundário» (p. 83; e a nós também, Sr.ª Doutora).
Enfim, julgamo-nos habilitados a vaticinar, sem temeridade de maior, que mais tarde ou mais cedo (e antes mais cedo do que mais tarde, se não já agora na maioria dos falantes) a forma espúria «empregue» desbancará de todo em todo a forma legítima «empregado», e não só nos tempos compostos da voz passiva («foi bem empregue» por «foi bem empregado», senão também nos tempos compostos da voz activa («tinha empregue» por «tinha empregado»).
Está dito desde muito que o erro é um dos factores de transformação (alguns mais optimistas dizem evolução) das línguas.
- Montexto

Helder Guégués disse...

Que título póstumo vamos atribuir a Rebelo Gonçalves, que registou «empregue» na página 375 do seu Vocabulário da Língua Portuguesa?

R.A. disse...

Porque é que Montexto não faz um blogue? Só lá ia quem quisesse!

Franco e Silva disse...

F. Rebelo Gonçalves, na mesma obra («Vocabulário da L. P.»), na p. 378, também pontifica ENCARREGADO e *ENCARREGUE (!!!???), além dos referidos EMPREGADO/*EMPREGUE (?)(p.375) e ainda, bem, ENTREGUE e ENTREGADO (p. 393).

Também postula *MANCHÉSTER (!!!???) em vez de MÂNCHESTER, apesar de considerar a inglesa «MANCHESTER» como esdrúxula (p.635); vá-se lá saber porquê.

É a tal situação: não podemos fiarmos religiosamente nos dicionários; pois se nem nos vocabulários de referência...

Helder Guégués disse...

E claro que Nunes de Figueiredo e A. Gomes Ferreira leram pela mesma cartilha, pois que na Gramática Elementar da Língua Portuguesa também registaram o duplo particípio empregado e empregue.

Helder Guégués disse...

Pelo modelo de «entregue», tirou o povo «empregue» — e não mandou Camilo, o maior de todos os mestres, que se ouvisse o povo? Ou teremos dois pesos e duas medidas? E escreveu José Neves Henriques num boletim da Sociedade da Língua Portuguesa: «Não se pode estabelecer regra absoluta para o emprego do particípio passado regular e do irregular do mesmo verbo do tipo de empregue e empregado, frito e fritado, porque a língua oscila um pouco neste particular.»

Anónimo disse...

Estabelecer regra pode-se e deve-se, ainda que em gramática poucas sejam absolutas. A cada um cabe depois segui-la ou infringi-la, segundo o conhecimento que alcançou dela e da língua em geral, e os fins e efeitos, inclusive estilísticos, a que mire.
Mas não é só neste particular que a língua oscila: hajam vista as «Áreas Críticas da Língua Portuguesa» (o nome dos autores agora escapa-me), que só cura de oscilações e vacilações.
Passa-se fenómeno semelhante, por exemplo, entre inúmeros, com «morrido» e «matado»: quase já só ouço «tinha morto» quando a regra impõe «tinha matado», na voz activa, e «foi morto», na passiva.
Não há erro ou desvio que não se possa defender ou justificar durante cinco minutos, como já desabafava Cândido de Figueiredo em transes análogos. E este também há-de ter a sua apologia, se é que não a tem ou teve já. E mais: podemos ter a certeza de que também o bastardo «tinha morto» vai desbancar o legítimo «tinha matado».
- Montexto

Venâncio disse...

Áreas críticas da língua portuguesa é da autoria de João Andrade Peres e Telmo Móia. Saiu na Editorial Caminho em 1995. Recenseei-o detidamente em «A dúvida flutuante», no Expresso de 5de Agosto desse ano.

A obra é «descritiva» por princípio (o seu corpus é a escrita da imprensa) e descarta implicitamente todo o labor «perscritivo». Não concordando inteiramente com a opção, lamento que não haja mais livros deste tipo.