23.12.10

Sujeito indeterminado

Fica a saber


      «Assistiram-se, então, a lágrimas em muitos rostos, em gente simples que até os cachecóis levou para a missa. Os Superdragões depositaram uma coroa, numa homenagem singela a quem, pela palavra era, também, um “superdragão”» («Um adeus emocionado a Pôncio Monteiro», Manuel Luís Mendes, Jornal de Notícias, 23.12.2010, p. 60).
      Desta vez o problema não é a regência do verbo assistir, nisso está bem: é um verbo transitivo indirecto e rege a preposição a. O jornalista já deve ter ouvido falar de sujeito indeterminado, mas vagamente. Neste caso, o verbo fica na 3.ª pessoa do singular, acompanhado do pronome se. Agora o jornalista tenha cuidado e não generalize e confunda. João de Araújo Correia, na obra A Língua Portuguesa, já advertiu: «Quando o pobre se ainda se atreve a apassivar, tomam-no as bocas ineptas como sujeito da proposição. Comparam-no com o on francês. Andam por aí aos baldões fraseados tristes como os seguintes: representou-se comédias, comeu-se batatas e abraçou-se condiscípulos. Se o se é sujeito, coloque-se, como quem o honra, antes do predicado. Tente-se a experiência para se obterem os seguintes luxos: se representou comédias, se comeu batatas e se abraçou condiscípulos. O senhor se ficará parvo de todo com esta honraria. Correram-se as cortinas da tribuna real. Com esta frase começa Rebelo da Silva a descrição de uma tourada. Se fosse repórter do século XX, escreveria: foram corridas as cortinas da tribuna real. Ou então, querendo ser mais chique, tomaria o se como sujeito e escreveria: correu-se as cortinas da tribuna real. Como quem diz: o senhor se correu as cortinas.»

[Post 4219]

5 comentários:

Anónimo disse...

Este, sim, é dos graves e gravíssimos.
- Montexto

Anónimo disse...

Mas, para não nos espantarmos em demasia com estas coisas, é bom lembrar que em linguagem o bom erra sete vezes ao dia, e setenta vezes sete o mau, o tartatmundo e eu, que me incluo no rol destes.
Muito me custa apontar escorregadelas no divino Garrett, mas «amicus Plato, sed...», etc.
Atente-se pois nestes passos mal dados:
. «Apanhei a Europa na sua maior e mais espantosa contradição.
E senão vejam.
O inglês alarga as calças, enche-se o mundo de varinos e soliotas. Desce ele as cinturas, pomo-nos todos dom o fato pelos quadris. Tosquia-se, ficamos chamorros. Deixa crescer as guedelhas, "não se ve senão nazarenos e simonianos" por essas ruas. Gosta de correr cavalos, faz correr cavalos, - de Lisboa a Sampetersburgo todos os rapazes querem ser jóqueis e ciganos.
Nós é que somos os macacos, e nós é que nos rimos!» («O Inglês», incluído nas «Obras Completas de A. G.», Círculo de Leitores, terc. vol., «Escritos Diversos. Da Educação», p. 126 [estirei-me um pouco neste excerto para deixar bem patente que a imitação servil da bifalhada vem de longe; só que agora aumentou exponencialmente pela via camone];
. «Duas letras góticas apenas coroadas por um timbre singelo - indicam modestamente que "se não querem usar de outros distintivos de armaria", que ficam para mais pomposos veículos, e para mais solenes ocasiões», ib., p. 128;
. «"Propõe-se outra vez as sais esguias", mas eu não creio nelas por ora», ib., p. 133.

Mas, para desconto de dois ou três deslizes, quantos e quantos acertos e achados e preciosidades e requintes! Ao Divino tudo se perdoa, por habitado pela graça (no sentido teológico e mundano do termo). Por alguma coisa foi o único escritor português que mereceu este epíteto, que eu serei o último a regatear-lhe.
- Mont.

Anónimo disse...

«tartamudo» e «de fato pelos quadris», claro. Lá está.
- Mont.

Anónimo disse...

Leia-se: «saias esguias» - apre!
- Mont.

Anónimo disse...

«com o fato pelos quadris» e «não se vê senão nazarenos»: assim é que é. Haja paciência.
- Mont.