Fernando Nobre já desafia Cavaco: «A partir de agora, é entre o senhor e eu» («Providencialismo e tragédia de um Nobre exaltado», Pedro Olavo Simões, Diário de Notícias, 20.01.2011, p. 20).
Milhões de portugueses falam da mesma maneira, mesmo sem estarem exaltados. Duarte Nunes de Leão, que conhecia bem a língua, escreveu na Crónica d’el-rei D. Afonso: «Entre o Senhor Rei de Portugal e mi,...» E Filinto também escreveu: «Entre ela e mim vou pôr de encontro imensos mares.» E já que falo nisto, ocorre uma questão paralela. Como se deve dizer: «Eu, se fosse a ti...» ou «Se eu fosse tu...»? Camilo escreveu desta última forma.
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13 comentários:
Escreveu mal.
Camilo também escreveu «hajam» no sentido de «existem», e não só escreveu, senão que defendeu o erro porque não sei que escritor mais ou menos clássico caiu em escrever isso uma ou duas vezes; «preferir antes», «legenda» por «lenda», «ter a dizer» por «ter que dizer», «amor pela pátria» por «amor da pátria», «os Burnay» por «os Burnays», a «família Burnay» pela «família dos Burnays»; e escreveu «se a Grâ-Bretanha nos não exibisse estas gargalhadas, teríamos de nos remediarmos com o produto da...», etc., etc.
Mas Camilo escreveu centenas de títulos e milhares de páginas, e nada disto obsta a que integre mui justa e mercecidamente o génio dos primeiros paladinos da língua.
- Montexto
Certo. Não é, contudo, o que afirma Augusto Moreno, que escreve que o primeiro é «dizer do povo, capitulado de incorrecto, e que pelo menos no do Minho é corrente», constituindo «um facto de linguagem que os gramáticos têm o dever de registar e que não podem proscrever».
O primeiro qual, Helder?
- Mont.
«Eu, se fosse a ti...»
Discordo de Augusto Moreno. Conheço bem as províncias do Norte, por cujo dicionário o próprio Camilo declarou, em nota de rodapé ao «Bem e o Mal», que costumava ler muito porque sabiam a língua portuguesa como Frei Luís de Sousa (que, agora sou eu que digo, das penas portuguesas é a mais correcta e serena, pura e suave).
Mas pode bem ser que em certas plagas minhotas campeasse tal construção - gulosamente aproveitada pelo homem de Seide, que nisto ia a todas, como fero coleccionador de modismos que era, - o que em todo o caso não faria dela mais que um mero regionalismo.
- Mont.
A construção «Eu, se fosse a ti, ...» é praticamente a única usada no distrito de Aveiro. Ouço-a desde que tenho memória.
Mas é de recear que passe a ouvir também a outra forma menos canónica, irregular ou até errada. Porque a irregularidade e o erro hoje em dia acabam sempre por levar a melhor: estão no seu tempo e elemeto; tudo os favorece e medra.
- Montexto
Eu, se fosse a si, caro Helder Guégués, não deixava que batessem tanto no "ceguinho".
Cá no Minho não o dizemos de outro modo.
O "ceguinho", neste caso, é o minhoto que já deixou de dizer "eu, se fosse vocemecê" e evita dizer "eu, se fosse você", pelo respeito que me merece.
Não é ou não devia ser novidade para ninguém que de vez em quando até os mais requintados toscanejam. Como já avertiu o rei filósofo naquele seu dito que já aqui citei: quem há aí tão acabado que tudo diga e faça perfeitamente?
Exemplo: «No seguinte trecho da sua «Floresta», I, 407, ed. de 1706, o padre Bernardes deixou-se contaminar de italianismo: "... chegaram a falar de um grande avarento, por nome Pedro, o Publicano; e disse um da roda: Esse não é Pedro, senão pedra; não hajais vós medo que ninguém lhe tire real das unhas. Respondeu outro: 'Quanto eu', nunca vi dele uma fatia de pão. Nem eu; nem eu tão-pouco, foram respondendo os mais." É maneira de dizer esta que me parece desusada. Os italianos dizem "quanto io", o que não significa que também não digam "quanto a me", e até jocosamente empregam "io", pronome da 1.ª pessoa do sing., nominativo, sujeito ou recto, em função de caso oblíquo ou complemento: "in quanto a io"»: mais uma vez Mário Barreto, «Através da Gramática», 1986, cap. LXII, 9.ª, p. 335.
Mas ainda mais erraria quem, por topar esta construção uma vez num mestre da língua, que em todos os outros lugares escreveu «quanto a mim» e «enquanto a mim», considerasse legitimado o emprego de «quanto eu», - que foi mais ou menos o que o próprio Camilo fez nos «Ecos Humorístcos do Minho» usando e defendendo o verbo «haver» empregado no plural como sinónimo de «existir».
Por mais que se saiba e conheça de linguagem (como o visconde de Correia Botelho certamente sabia) ou do que quer que seja, nada suprirá o bom senso e o bom gosto, ou, na versão bife da solteirona Jane Austen, «sense and sensibility».
- Mont.
«É grande irregularidade dizer: «Senhora, entre vós e eu/ e perante João Antão/ me sofrei uma repreensão» (Prestes, 155): Epifânio Dias, «Sintaxe Histórica Portuguesa», § 66.a), obs. 4.ª
Mas, relativizando:
Depois de dar muitos exemplos de bons escritores com «entre ti e mim, entre mim e ti, entre vós e mim, entre ela e mim, entre mim e minha mãe, entre o Senhor Rei de Portugal e mim», conclui I. Xavier Fernandes, nas «Questões de Língua Pátria - Coisas Que não Estão nas Gramáticas e Outras contra O Que Elas Contêm», vol. II, cap. «Sintaxe Pronominal, p. 108 e ss: «Como se vê, as construções sintácticas, "entre ele e eu" e "entre mim e tu", não são de bom cunho, embora delas possa aparecer um ou outro exemplo em algum escritor.»
E a seguir: «Também o grande mestre da língua Ernesto Carneiro Ribeiro ("Serões Gramaticais", 3.ª edição, pág. 603), considerou incorrecto empregar a forma pronominal, "eu", que faz de sujeito ou de atributo, em vez da variação pronominal, "mim", dizendo "entre ele e eu", em lugar de "entre ele e mim". "Temos por melhor sintaxe e correcção gramatical - diz o mesmo Autor - os exemplos, em que se variou o pronome, incontestavelmente submetido à regência da preposição 'entre', que o força a variar".»
É ponto assente.
Mas ao «se fosse a ti» ainda voltaremos.
- Montexto
Escrever "Se eu fosse tu" é escrever mal? Gostava agora de saber as razões.
Parece que não é fácil dar-lhas, caro Kupo, porventura porque não existem.
Com efeito, nem a «Enciclopédia Portuguesa e Brasileira» vê mácula em nenhuma das expressões, limitando-se a consignar, além do mais e de considerar «ti» também forma antiga e o mesmo que «tu», que «“Se eu fosse a ti”» é «expressão popular equivalente a “se eu fosse tu”, isto é, se eu estivesse no teu lugar».
Temos pois que Camilo usou «se eu fosse tu», e que a «Portuguesa e Brasileira» reputa esta forma por correcta, e a forma «se eu fosse a ti» por sua equivalente popular.
Perante isto, parece que para já poderemos assentar sem grande temeridade em que ambas as formas se justificam, nem padecem de irregularidade censurável, e Camilo não terá andado mal em escrever «se eu fosse tu», nem Augusto Moreno em reputar «se eu fosse a ti» um facto da língua que os gramáticos devem reconhecer e acatar.
Mal andei eu em me apressar a concluir que Camilo escreveu mal usando de «se eu fosse tu» por «se eu fosse a ti». É bem feito: para não me esquecer do que eu próprio costumo repetir: antes de emendar um mestre da língua, e logo Camilo, pensar duas vezes. Resta-me cantar a palinódia.
Mas, realmente, eu, ao invés de um leitor «supra», nunca ouvi a forma «se eu fosse tu», ou, se a li em Camilo ou noutro, não reparei.
Talvez a forma «se eu fosse a ti» seja mais comum hoje em dia, pelo menos em Portugal, ou a frequência de cada uma das expressões varie de região para região…
- Montexto
Já aqui no Brasil pode-se dizer, sem sombra de dúvida, o oposto: que a forma "se eu fosse a ti" soaria estranhíssima a qualquer falante.
Seja como for, também nunca a tinha lido ou ouvido e folgo em conhecê-la; boas opções para diversificar a escrita sempre são bem-vindas.
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