29.1.11

Pontuação

Ora, ora


      «Por isso, quando o seu carro me apareceu à frente, ainda antes do Cais do Sodré, foi-me fácil alimentar o crescimento de uma irritação no espírito. Desacelerar atrás de si, fez-me prestar atenção súbita à realidade concreta daquele fim de tarde: o trânsito, as apitadelas, o céu escuro, a quase noite» («Carta à senhora que ultrapassei pela direita na semana passada, na zona de Santa Apolónia», José Luís Peixoto, Visão, 13.01.2011, p. 12).
      Não pode haver, julgo, duas interpretações sobre isto: «Desacelerar atrás de si», que, em si, é uma oração, é o sujeito de «fez-me» — e nunca se separa o sujeito do verbo e este dos seus objectos com uma vírgula, quando a oração se apresentar na ordem directa. Um escritor até pode distrair-se ou julgar ter uma licença especial para desrespeitar a gramática, mas os revisores não podem ter essas veleidades nem distrair-se muito.

[Post 4373]

8 comentários:

Anónimo disse...

Salvo que o sujeito inclua uma oração de «que» com o verbo em formas finitas, circunstância que, por tornar o segmento do sujeito muito longo, pode justificar, para desfazer eventuais anfibologias, uma vírgula a separar o verbo que forma o sujeito do verbo que indica a acção praticada ou sofrida pelo sujeito.
No caso em espécie, porém, a oração que faz de sujeito, além de ter o verbo no infinitivo, é curta, pelo que de modo algum justifica a sua separação do predicado.
Rodrigo de Sá Nogueira escreveu uma «Guia Alfabético da Pontuação», de ler, mas o melhor livro do meu conhecimento sobre o assunto é o «Traité de la Ponctuation Française», de Jacques Drillon, Gallimard.
- Montexto

Anónimo disse...

Alfabética, digo.
- Mont.

Helder Guégués disse...

Ainda que fosse longa. O melhor livro do meu conhecimento sobre o assunto é, para o português, Pontuação e Análise Sintáctica, de Jaime Rebelo. Só me lembro de uma aparente (aparente, atenção) excepção, que é a do sujeito enfático: «Tu, estuda, se queres vir a ser alguém na vida.»

Anónimo disse...

Os factos da língua tirados dos melhores autores são inúmeros a atestar a separação de sujeitos formados por orações mais ou menos longas dos respectivos predicados. E não só orações formadas de predicados.
Mais: o uso da vírgula (e toda a pontuação, mas particularmente o da vírgula) varia de época para época, de escritor para escritor, no mesmo escritor de livro para livro, no mesmo livro de página para página, e na mesma página de frase para frase.
Mais: excepto num número muito reduzido de casos, pode-se pontuar de muitas, várias e até desvairadas formas, sem prejuízo de maior para a inteligibilidade do texto e pensamento.
- Montexto

Anónimo disse...

Trago uma vez mais as palavras de Cláudio Moreno, desta vez sobre a questão da vírgula entre sujeito e predicado:

"O princípio geral é muito simples: como devemos reservar a vírgula para assinalar tudo aquilo que foge à normalidade sintática, é evidente que não há razão para separar o sujeito do verbo, nem o verbo de seu complemento, já que esta é a ordem canônica da frase no Português. Todavia, quando o sujeito for oracional (representado por uma oração subordinada substantiva), os bons escritores empregam, muitas vezes, uma vírgula para assinalar com maior clareza o fim do bloco do sujeito. Em Machado encontramos tanto exemplos sem vírgula (“Quem não viu aquilo não viu nada”; “Quem for mãe que lhe atire a primeira pedra”) quanto com vírgula (“Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência”; “Quem viesse pelo lado do mar, veria as costas do palácio, os jardins e os lagos…”; “Quem morreu, morreu”). Um excelente exemplo pode ser encontrado em Vieira: “…ninguém se atreva a negar que tudo quanto houve, passou, e tudo quanto é, passa”. Não podemos negar que a vírgula que foi empregada nos exemplos acima apenas veio facilitar o trabalho de processamento da frase; se ela fosse inadequada, ocorreria o efeito oposto. Foi certamente por isso que os nossos literatos sempre consideraram facultativa a vírgula nesta posição.

Num breve passeio pelo mundo dos provérbios portugueses, há muitos exemplos em que esta vírgula, embora possível, pode ser dispensada: “Quem avisa amigo é”; “Quem bate no cão bate no dono”; “Quem dá o mal dá o remédio”; “Quem quer o fim quer os meios”, “Quem não deve não teme”. Ela passa a ser muito útil, no entanto, nos casos de construção paralela, em que o verbo da oração substantiva é seguido imediatamente pelo verbo da oração principal: “Quem quer, faz; quem não quer, manda”. “Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”. “Quem procura, acha; quem guarda, sempre tem”. “Quem não faz, leva”. Agora, se o verbo for idêntico nas duas orações, esta vírgula passa a ser indispensável: “Quem deu, dará; quem pediu, pedirá”. “Quem vai, vai; quem fica, fica”. “Quem sabe, sabe”. “Quem pode, pode” — isso sem falar naqueles casos em que a forma verbal pode se confundir com um substantivo homógrafo, criando-se uma ambigüidade que a vírgula desmancha imediatamente: “Quem quiser, peça“; “Quem ama, cobra“; “Quem teme, ameaça“; “Quem deseja, casa” (não se trata de alguém que quer peça, ou ama cobra, ou teme ameaça, ou deseja casa).

Aqueles que protestam contra essa flexibilidade demonstram que não compreenderam que a razão de ser da pontuação é o leitor. Não se trata, aqui, de voltar àquela antiga visão de pontuação subjetiva, submetida ao simples capricho de quem escreve; bem pelo contrário: a finalidade exclusiva dos sinais de pontuação é orientar o leitor no trabalho de decodificar as frases que escrevemos. Tudo que contribuir para isso será bem-vindo (e vice-versa)."

Anónimo disse...

Muito bem, caro Kupo. É isso mesmo.
Mas o que me confrange é que não baste uma leitura medianamente atenta dos clássicos e outros escritores de boa nota para remover qualquer dúvida... Mas, pelo visto, não basta.
- Mont.

Anónimo disse...

Já agora, que se cura de pontuação, peço também vénia para dar parte da usada na tradução de um livro de novelas de F. Scott Fitzgerald (pena do género da de Turgueniev), que saiu com o título do «Estranho Caso de Benjamin Button» (decerto para aproveitar a voga da fita que por aí anda ou andou com este crisma, nem que para tal se atraiçoe, sem outra razão estritamente linguistica ou estilística, o original, que reza «Tales of the Jazz Age: Fantasies»), posto em linguagem por Nuno Castro, 2010, e vendido já não me lembra com que revista.
«Ela é engenhosa, mas extraordinária», como disse Camilo da grafia do poeta Silgueiros, no «Cancioneiro Alegre» (ver últimos comentos na entrada «Acordo ortográfico» deste blogue, 24.01.2011).
Aí ficam exemplos para edifício da modernidade, sempre sôfrega de mudança, criatividade e originalidade:

- Lembra-te de que aqui sempre serás bem recebido. - disse ao seu filho.»

- Eu sei. - responseu John com uma voz rouca.
- Não te esqueças de quem és e de onde vens. - continuou o seu pai orgulhosamente.» (p.8.)

- O mais rico, de longe.- repetiu Percy. (p. 10.)

- Deve ser muito rico. - limitou-se a dizer John.

- Eu adoro jóias. - assentiu Percy com entusiasmo. (p. 11.)

E por aí adiante, sempre assim.
- Montexto

Anónimo disse...

Emende-se para «linguísticas» e «respondeu», antes que apareça aí o R.A. de férula na mão e cara de riso. E as aspas... aspem-se às citações (não se vá julgar que constam da tradução).
- Mont.