«A dobradiça de uma das portas do armário tinha sido quebrada durante a busca e ela pendia agora torta nos gonzos» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 83).
Claro que sempre podemos complicar a frase com mais sinónimos: «A dobradiça de uma das portas do armário tinha sido quebrada durante a busca e ela pendia agora torta nos gonzos. As portas, que tinham quatro bisagras, ficariam agora definitivamente desiguais, pois já não se fabricavam borboletas daquelas. A fábrica de charneiras, onde tinha trabalhado um tio, fechara há muito. “Que porra!”, pensou Samir. “Agora vou ter de fazer eu um engonço novo na oficina do meu primo. Se a miúda vê que a chumaceira está partida, estou tramado.” Lembrou-se então que tinha alguns gínglimos na arrecadação, e foi para lá que se dirigiu. Procurou na caixa e não encontrou nenhuma macha-fêmea que se assemelhasse, ainda que vagamente. “No baú!” Encontrou um mancal que não destoava muito. Grato, deu um beijo sonoro no quício.»
[Post 4317]
20 comentários:
Gostei. Especialmente dessa macha-fêmea que range vivamente como 'presidenta'.
Cumpts.
Mais:
«A fábrica de charneiras, onde tinha trabalhado um tio, fechara há muito.»
Em bom português que respeite a concordância de tempos (o que última e modernamente se não costuma),
. ou: «A fábrica de charneiras, onde tinha trabalhado um tio, fechara havia muito»;
. ou:«A fábrica de charneiras, onde tinha trabalhado um tio, fechou há muito»,
consonate os casos.
- Montexto
Não é bem assim, Montexto: «há» por «havia» encontra nos clássicos, e só por má-fé, conhecendo-se, se afirmará o contrário.
Antes de mais, venham lá exemplos clássicos, caro Jorge da Mata, se faz favor.
- Montexto
Mas, realmente, sempre a complicar e a encarecer: «Chancelar a morte do militar em rodapés a correr e baixos de página e atribuírem-se honras de Estado… mediático ao assassinato do cronista (não cronista social como alguns lhe chamam, como se Carlos Castro e Fernão Lopes fossem páginas do mesmo livro) e às incidências macrotrágicas em que foi encontrado o seu corpo […]», António de Sousa Duarte, «Público», de 12.01.2011, p. 33.
«Macrotrágicas!»
Os Gregos a um homem que matou o pai, casou com a mãe, com quem teve filhos, e, ao saber que o assassinado era seu pai, a mulher sua mãe, e os filhos seus irmãos, vazou os olhos e, sendo rei, abdicou e exilou-se, chamaram trágico, simplesmente... Mas os Gregos foram clássicos; nós, eternamente barrocos.
(E deixai lá os venerando manes do velho Fernão Lopes em paz!)
- Montexto
O autor decerto aprendera que um dos "pecados da língua" era a repetição de palavras e a evitou ao extremo do bom senso.
Quanto ao "há" por "havia", terei de concordar com Jorge da Mata. Só não saio agora à cata de exemplos porque não disponho do tempo e dos clássicos à mão. Mas tenho a certeza de que virão.
Dar-lhos-ei a seu tempo, Montexto, não me esquivarei. Mas o meu pedido implícito tem, decerto, precedência.
Não tem precedência, caro Jorge, porque eu não lhe posso dar exemplos do que digo que não há. A prova cabe primeiro a quem afirma a existência do mostrengo, não a quem a nega. É a tal basezinha.
- Mont.
Explique lá melhor, caro Kupo, também se faz favor.
- Mont.
Não sei a que se refere esse pedido de explicação. Na impossibilidade de sair à procura de exemplos, valha-nos, por ora, de muleta, a resposta n.º 16858 do sítio Ciberdúvidas, que tantas vezes foi invocado como argumento de autoridade.
Embora ali não se teçam muitas considerações em defesa da questão, pode-se ver que é mais aceito e difundido do que supunha o Montexto.
De que é difundido e aceito eu só podia duvidar se não fosse ouvindo e lendo, suposto que o mínimo possível, o que por aí se diz e publica, caro C. Kupo.
Mas o que se discute é que esse giro se encontre nos clássicos, quando menos, que seja bom português.
O meu pedido referia-se porém à 1.ª parte do seu comentário, sempre oportuno. Mas deixe lá, não se incomode: tanto faz.
- Mont.
Ora, referia-me àquilo que todo professor de colégio costuma ensinar a seus alunos: que devem evitar de repetir as palavras, usando-se sinônimos para referi-las repetidas vezes num mesmo trecho (em geral, não costumam dizer que a repetição proposital pode ser um recurso de estilo, e algumas vezes até desejável, mas isso não vem ao caso).
O problema é que às vezes alguns ficam com isso tão arraigado na cabeça e levam isso tãoa sério e a um tal ponto que acabam por fazer como o autor aí, a nos brindar com seis ou setes sinônimos para tão curto espaço! Alguns dos quais só mesmo com dicionário para ter-se a certeza do que se tratava.
Era isso, Montexto. Para enriquecer vocabulário, pode ser uma boa; mas não me parece ser a melhor solução para o texto em tela.
De fato, quanto a ser clássico não posso afirmar agora; saí em defesa de sua legitimidade atual. E tenho a certeza de que os bons escritores dos séculos XX e XXI usaram "há" por "havia" sem constrangimento.
Como se pode constatar através das imagens no sítio
https://ssl1453.websiteseguro.com/aladimmetais/produtos.asp?lang=pt_BR&tipo_busca=subcategoria&codigo_categoria=4&codigo_subcategoria=8
dobradiça e gonzo não são propriamente sinónimos.
P.S. Alguma coisa se passa com o blogue. Já tinha enviado este comentário antes, por duas vezes, e ele não apareceu. O Montexto quixa-se do mesmo.
Escritores do séc XX e XXI, caro Kupo?! Sem constragimento?! São a rodos, caro Kupo, a rodos! Se não encontrar exemplos, passos ou passagens (com este também não se constrangeram, como com outros muitos, qual colocar questões, colocar e meter por pôr, aperceber-se por reparar, resultar usado como intransitivo, constatar, conduta por comportamento ou procedimento, etc., mas não mais, musa, não mais...), eu posso-lhos ministrar calinadas a flux. Aos tais difícil é encontrar-lhes algum constrangimento, isso sim.
Mas o busílis não está aí; o busílis está em se me apresentarem exemplos clássicos ou, quando menos, de gente que se distinguiu precisamente por conhecer a sua língua, e não por escrever de outiva nem de cor.
- Montexto
Deve ser qualquer coisa relacionada a inserção de endereços eletrônicos.
Chovendo no molhado, julgo ter lido 'há' por 'havia' em Jorge de Sena, nos Sinais de Fogo. Também vi por lá uns verbos reflexos sem o pronome. Sei que o autor passou algum tempo no Brasil e que não chegou a rever o texto... Também não é um clássico.
Onde achei 'há' por 'havia' e logo duas vezes na mesma frase foi na tradução do Salazar de Filipe Ribeiro de Meneses. Essa registei-a e publiquei-a.
Nos clássicos, até ver, ausência de prova não é prova de ausência...
Mas que sei eu.
Não me me parece que saiba pouco, caro Bic Laranja. Esse «Salazar» foi escrito em bife, depois posto em linguagem, por versão reputada por Vasco Pulido Valente bastante decalcada do original.
Mas não só em Jorge de Sena, também encontra exemplos em Torga, que está longe de ser dos piores.
Eu aguardo é exemplos de Fernão Lopes, Gil vicente, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, António Ferreira, João de Barros, Luís de Camões, Agostinho da Cruz, Tomé de Jesus, F. Mendes Pinto, Heitor Pinto, Diogo do Couto, João de Lucena, Diogo Bernardes, F. Rodrigues Lobo, Luís de Sousa, António Vieira, Francisco Manuel de Melo, da «Arte de Furtar», Manuel Bernardes, Cruz e Silva, Correia Garção, Nicolau Tolentino, Filinto Elísio, Barbosa du Bocage, José Agostinho de Macedo, Almeida Garrett (neste já encontrais um que outro desgarrado, se souberdes buscar), António Feliciano de Castilho, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Rebelo da Silva, Latino Coelho, e, vá lá, até de Antero de Quental, Machado de Assis, Graciliano Ramos, João de Araújo Correia, enfim até de Eça de Queirós, que neste particular não dá cartas. E não um exemplo isolado num que noutro autor, perdido no meio de muitos outros perfeitamente correctos e bem conformados, mas vários e reiterados.
Fico á espera.
- Montexto
Vire-se o acento ao «a» para o outro lado; senão, aparece já aí um de palmatória em riste e a salivar de gozo exprobrando-me e levando-me a coisa à conta de inscícia indesmentível e clamorosa...
- Mont.
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