Tratava-se de traduzir a seguinte frase em francês: «Le chrétien croit à un Dieu possédant toutes les perfections.» Respondeu Augusto Moreno na obra Lições de Linguagem, vol. 1 (Porto: Editora Educação Nacional, 1937, pp. 94-95): «É que o nosso gerúndio não traduz bem, em regra, o particípio presente francês. O nosso gerúndio nunca deve ser meramente qualificativo: tem sempre alguma coisa de circunstancial. O possédant devia traduzi-lo por uma oração relativa. Assim: “Crê o cristão num só Deus, que possue todas as perfeições.” Repare também em que o verbo antes do sujeito, ao contrário do estilo francês, é característico da melhor vernaculidade. Quando a clareza e harmonia se não oponham à inversão, é claro.»
[Post 4369]
5 comentários:
Para quem não gostar muito de 'que', eu traduziria como: "O cristão crê em um só Deus possuidor de todas as perfeições". Ficou até parecido com o Credo: “Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra...” Fico na dúvida se caberia obrigatoriamente uma vírgula após 'Deus'.
A solução do Sr. Paulo Araújo para fugir o «que» (não, não me esquecei do «de») naquele passo é óptima.
- Mont.
Esqueci, digo.
- Mont.
Exactíssimo, caro Helder.
Há-de-se lembrar de que foi mais ou menos isso que referi a propósito do trecho de um jornalista, cuido que Fernandes Ferreira, comentado aqui, no blogue, não há muito tempo.
Se bem me lembro, é M. Rodrigues Lapa, na «Estilística da Língua Portuguesa», que agora não tenho comigo, que como que abre uma excepção ao gerúndio empregado como adjectivo, e é quando a qualidade ou característica por ele significada se apresenta com carácter não constante, mas só passageiro ou momentâneo. E cita exemplos.
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Quanto à colocação, as palavras no português tendem a dispor-se sempre o mais naturalmente possível na ordem inversa, salvo quando a clareza absolutamente lho tolha. É facto verificável a cada passo no falar espontâneo e nos clássicos. Exactamente o oposto do francês, em que predomina quase absolutamente a ordem directa, apresentada já por Rivarol no famoso ensaio sobre a universalidade da língua francesa como o grande factor da inteligibilidade e clareza do francês. E Camilo, no «Eusébio Macário» e na «Corja», para caricaturar a prosa afrancesada dos realistas, usou adrede a ordem directa mais do que em qualquer outra obra.
Sobre este aspecto do português pronunciou-se de modo definitivo António Feliciano de Castilho em texto trasladado por Caldas Aulete para uma gramática sua, chamando-lhe as duas regras de ouro do português (a outra consiste na omissão tanto quanto possível dos pronomes, possessivos e demonstrativos, também exactamente no oposto do francês), e por Mário Barreto, cuido que nos «Fatos da Língua Portuguesa».
Vale a pena lê-lo: toca o cerne do idioma.
Estas duas questões, sobretudo a da colocação, estão quanto a mim entre as mais importantes das trazidas para o blogue, porque versam a própria estrutura e corpo do idioma.
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Enfim, chamo só atenção para a regência empregada com o verbo reparar por Augusto Moreno no excerto em apreço: «Repare também em que o verbo...»
É a regência exacta e correcta, ainda que, segundo Epifânio e Barreto, firmados nos factos da língua (mas não por exemplo segundo Rodrigo de Sá Nogueira), pudesse ter escrito «Repare também que...»
— Montexto
Exemplo de um gerúndio condenável e empregado num texto em português de referência, utilizado até por Epifânio e bons dicionários em abonações:
«A Bíblia Portuguesa
contendo
O Velho e o Novo Testamento
traduzida em português
segundo a Vulgata Latina
por
António Pereira de Figueiredo».
Se aquele «contendo» caiu da pena do P.e Pereira ou do editor é questão «quod nihil scitur», como diria Francisco Sanches.
- Montexto
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