Pergunto
«O rapaz tirou o pé debaixo do lençol e examinou os dedos. Mas não conhecia os sintomas necessários para se justificar» (As Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain. Tradução de Berta Mendes. Lisboa: Editorial Inquérito, 1944, p. 62).
«Tirou o pé debaixo do lençol» ou «de debaixo»? João Ferreira de Almeida, o tradutor da Bíblia: «Todavia os Edomitas se revoltaram de debaixo do mando de Judá, até o dia de hoje; então no mesmo tempo Libna se revoltou de debaixo de seu mando: porque deixara a Jeová, Deus de seus pais» (2 Cr 21,10). Usamos, para expressar esta ideia, a preposição, repetindo-a (de+baixo)?
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15 comentários:
O pobre rapaz tinha uma prótese, e vergonha dela — vai daí, escondeu-se debaixo do lençol antes de a tirar.
Não, de forma alguma...
Não, de forma alguma... E pronto! Mais palavras para quê? Foi a sabedoria que falou.
O padre António Pereira de Figueiredo tirou assim o trecho em linguagem: «Todavia Edom se manteve rebelde até o dia de hoje, para não entrar debaixo do poder de Judá: no mesmo tempo se rebelou também Lobna para não entrar debaixo da sua obediência. Porque tinham abandonado o Senhor Deus de seus pais» (Paralipómenos, II, 21, 10).
Nunca: «tira o pé debaixo» do lençol»; mas: «tira o pé de debaixo do lençol», que também ninguém ou muito pouca gente dirá, porque da colisão das duas sílabas iguais parece que só sobreviveu uma, talvez por aquilo da haplologia sintáctica. Por ex., não há aquela expressão, cuido que até mais propriamente brasileira, de «sair de baixo»? Raro se ouvirá «sair de debaixo»...
- Montexto
Ou seja, certo e certíssimo é «de debaixo», e só a lei do menor esforço explica e legitima a omissão da preposição. «De debaixo» lê-se na «sua» infalível Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
Eu diria que sim.
Recordo-me de ter visto isso tratado com algum pormenor em algum autor, «de cujo nome me quero lembrar», mas não consigo.
Como não tenho a livralhada comigo, não lho posso indicar.
- Mont.
Também acho que deveria ser "de debaixo da cama" no caso trazido pelo Helder. Ou talvez "de baixo da cama" separado e sem repetição. O que é certo é que a preposição "de" deve aparecer como tal - preposição - para indicar o LUGAR DE ONDE. O "debaixo" significa LUGAR ONDE, no meu entendimento, e no de Cláudio Moreno, cujas palavras uma vez mais trago para ilustrar a questão:
"[...]: acho que detrás e debaixo são um pouco mais simples que o movediço demais; nosso idioma parece estar marcando, aqui, a distinção entre “lugar onde” e “lugar DE onde”. Compara:
(1) Ele estava debaixo da cama (onde)
(2) Ele saiu de baixo da cama (de onde)
Na frase (2), de baixo se opõe a de cima; é a mesma oposição que vamos encontrar em “ele mora no andar de baixo”, “ele mora no andar de cima”.
O advérbio detrás também expressa “lugar onde”; é sinônimo de atrás. A expressão de trás expressa “lugar DE onde”; essa preposição DE é exigida por um grupo expressivo de verbos de movimento. [...]"
Só resta sabermos, já que ele não mencionou, como ficam os casos tais como "de debaixo", "de embaixo", etc. Aqueles que lá conhecem os clássicos e os bons gramáticos podem-no esclarecer.
Pensando sobre um assunto paralelo: gostaria de saber se, nas expressões «a viagem correu mal» ou «Como é que correu o teu dia?», o uso do verbo «correr» tem, na sua origem, o do verbo «decorrer». Alguém sabe?
RS
(Levantei esta questão numa outra entrada, mais antiga, que provavelmente muito poucos já visitarão.)
Se não está já esclarecido, caro Kupo, receio que também não vá ficar.
- Mont.
Ao penúltimo Anónimo, sua questão está posta no Dicionário Eletrônico Luft:
<< 8. Int: correr. Decorrer, passar (minutos, horas, dias, meses, anos, o tempo).
Ter seguimento no tempo, passar(-se).
Ter andamento; transitar (um inquérito ou processo, por exemplo).
9. Int Pred: correr + Predicativo. Passar, decorrer (em certo estado ou condição): Corriam serenos os dias. O papo corria animado. >>
Obrigado, caro Paulo Araujo. Mas a minha questão era a de se a origem histórica dessa acepção do verbo «correr» tinha alguma relação com o verbo «decorrer» (supressão gradual do «de» na oralidade).
RS
Em que pesem as semelhanças fônica, lexical e gráfica, as etimologias, também muito semelhantes, indicam que as duas palavras podem ter nascido separadamente (curro,is, decurro, is); ou, quem sabe, sua suposição histórica já tenha ocorrido desde o latim.
É curioso observar - e isto talvez ajude a solver sua dúvida - é saber que os registros mais antigos de 'correr', no português, são dos séculos XIII e XIV e os de 'decorrer', dos séculos XIV e XV, como se isto 'invertesse' a lógica da supressão do 'de-'. Não sou etimólogo, sou curioso, e acrescento às minhas a sua dúvida.
Já para a forca, sr. Paulo Araújo! Esse primeiro "curioso", nessa acepção, é barbarismo.
:-)
(essa carinha é de ironia, bem se avise.)
Sorte minha que o último enforcado, por estas bandas, tenha sido o Tiradentes; usei o perigoso adjetivo 'curioso' na brasileiríssima acepção 4 do Houaiss:
" 4 B infrm. que ou quem se ocupa de uma atividade ou profissão sem formação regular e/ou sem experiência no assunto; amador, prático"; a que me levaria à forca é a 9:
"9 que é inesperado, estranho, notável ¤ gram acp. 9 consid. gal. pelos puristas, que sugeriram em seu lugar: estranho, singular."
Mas o primeiro "curioso" de seu comento estava em: "É curioso observar...".
«Curioso», galicismo nesse sentido?
Ouçamos o Imperador: «Questão é curiosa nesta filosofia qual seja mais precioso e de maiores quilates: se o primeiro amor, ou o segundo» (Sermão do Mandato, V, p. 69, nos «Sermões», Leya, 2008).
Uns parecem, e não são; outros são, e não parecem.
- Montexto
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