Isso é o que vamos ver
Na edição de ontem do programa Histórias Assim Mesmo (isto é comigo?), dedicado à história do topónimo São Lourenço de Mamporcão, Mafalda Lopes da Costa usou o vocábulo «sanguinário» e pronunciou o u. E bem, como bem teria pronunciado se não tivesse lido o u. Com a eliminação do trema, no Brasil, é muito provável que a médio/longo prazo se percam estas duplas pronúncias.
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19 comentários:
Sempre achei que o trema não devia ter sido abolido. Mas quando digo isto acham que sou um Velho do Restelo.
Com ou sem o trema, usamos, escrevemos e pronunciamos líquido/líqüido, indiferentemente. E as lojas que fazem liquidação vendem muitos liqüidificadores.
Em pleno advento do Jovem, nada que opor a um velho de aspeito venerando.
Histórias assim mesmo: também pode ser uma piscadela à obra de Kipling posta em linguagem com esse título...
— Montexto
Paulo Araújo,
Porque é que dá só exemplos de dupla pronúncia, como se isso cobrisse a questão?
Ou quer sugerir que também para tranquilo ou linguiça vem aí mudança?
De resto, exactamente muita vacilação abre a porta a prolações indevidas.
Sr. Venâncio, quis apenas mostrar que há palavras que levavam trema, mas que tinham dupla pronúncia e dupla grafia (como registra o Houaiss2001), mesmo antes do AO90. Voltando ao que interessa, creio que a supressão do trema levará muita gente a dizer /linghiça/ e /trankilo/; por enquanto, já se diz por brincadeira, como crítica ao AO. Mas não tenho dúvida de que a língua sempre evolui para a forma mais simples, tanto na escrita quanto na fala.
Por isto, sou favorável à ortografia cada vez mais próxima da fonética.
Aliás, com relação a /trankilo/, será mais fácil a mudança; consta-me que em algumas regiões do interior essa é a pronúncia habitual, mesmo porque existem (ainda) homens com o nome de Tranquilino, sem prolação do 'u'.
Caro Paulo,
Não sei se a língua evolui sempre para as formas mais simples. Bastará lembrar que as complexíssimas morfologias do latim ou do árabe não caíram do céu. (Abandonei o projecto de aprender árabe quando vi que o tratamento do numeral «quatro» ocupava cinco páginas da gramática...).
Por outro lado, o que observamos (cinjo-me ao português) é que a grafia frequentemente acaba por influir na pronúncia (já aqui falámos no caso lusitano de naScer, deScer, creScer).
Também sou, e fervorosamente, por uma ortografia próxima da fonologia. O facto (ou a chatice) é que a fonologia tende, já de si, para acomodar-se à ortografia.
Sr. Venâncio,
Acredito que tenha sido muito difícil a assimilação do árabe, mas os empréstimos frutos de uma ocupação de centenas de anos acabam ficando; graças a Deus, com ortografia e fonética simplificadas (no post 'Alhambra' temos um bom exemplo). O "Glossário etimológico das crônicas portuguesas dos Portugaliae Monumenta Historica" tem muitos exemplos dessa dificuldade que, de uma forma ou de outra, conseguiu-se assimilar.
Paulo,
Não me entendeu. Eu falava (a propósito da sua tese de que as línguas tendem para a simplificação) da imensamente complexa morfologia do árabe. Em si mesmo. Não sei que tenha isso a ver com os arabismos históricos do português.
N.B.
Eu sei que o árabe clássico é, por definição, uma língua algo fixada no tempo. Mas o processo por que passou foi de intensa complexização, tal como sucedeu ao grego e ao latim.
O que leva os idiomas a (pelo menos historicamente) uma crescente complexidade? Eis uma questão que já pus a vários linguistas, deixando-os de boca aberta. Nunca tinham pensado nisso. Serei um génio?
O maior disparate que se pode fazer em linguística é embarcar em exercícios de futurologia. Em Portugal a supressão do trema nos anos 40 não fez com que tranquilo se transformasse em trankilo (e curiosamente é no Brasil, onde a palavra sempre levou trema, que se assiste em certas zonas à fonética de "trankilo"... o que talvez devesse servir para as pessoas que acham que a ortografia, como regra, influi na pronúncia pensarem um bocadinho melhor... mas pensar, como se tem visto em toda esta discussão, é coisa que pouca gente faz). Até em palavras como sequestro a supressão do trema pouca diferença fez, se é que fez alguma, e isto mesmo tendo em conta que em palavras derivadas como "sequestrar" ou "sequestrador" a pronúncia do u é penosa para a fonética portuguesa e portanto tende a cair (o que muita gente faz é pronunciar "sekestrar" mas "sequestro"). Portanto por que diabo há de acontecer algo do género agora que o trema acaba no Brasil também?!
Quem imaginaria, por exemplo, que fosse só depois da abolição do p mudo de Egito que se começaria a ouvir por aí a pronúncia (errada) de "Egipto"? Há até quem faça uma pausazinha para o vincar bem. Egi-p-to. Tolices de gente tola, evidentemente, mas o facto é que é com as coletivas tolices de gente tola que as línguas evoluem. O português só existe porque houve milhões de pessoas ao longo de mil e tal anos a dizer muita asneira em latim. Noutros espaços, outras asneiras deram origem a outras línguas, e os latinistas de antanho nunca poderiam ter previsto que asneiras se solidificariam em novos usos linguísticos e quais seriam esquecidas. Nem com uma visitinha a Delfos.
De igual forma, estar-se hoje a prever coisas destas a longo/médio prazo é grave disparate. Ninguém pode fazer a mínima ideia do lado para onde a asneira coletiva dos falantes de português irá fazer deslocar a língua. Ninguém. Mas esse é disparate que toda a gente parece querer fazer gala de cometer.
Enfim. É como eu digo: não se pensa muito e quando se pensa pensa-se muitas vezes mal.
Jorge,
Se me permite, vou "pensar" então um bocadinho.
A influência das mudanças gráficas sobre a pronúncia não é um tema de "futurologia", mas de Gramática Histórica. Há factos históricos que o comprovam, é questão de informar-se. Dei-lhe o caso (português) de nascer, descer, descender, etc., etc. Poderia ser, também, o do início de palavra in- e en-. Uma restauração erudita ortográfica restabeleceu muitos in-, e os falantes foram atrás.
Bom, acha que consegui "pensar" um niquinhas?
Agora um assunto algo paralelo, e muito actual. Hoje, entre nós, dá-se uma fuga ao «i» átono, que acaba convertido em «ê», uma novidade na prolação lusitana.
Leia a este respeito:
ciberduvidas.sapo.pt/articles.php?rid=1413
Desculpem. Releio o artigo abaixo (de que há ligação no anterior, e de que estava quase esquecido...) e aprecio, de novo, o DESPORTIVISMO do Ciberdúvidas. Chapeau, senhores!
http://ciberduvidas.sapo.pt/articles.php?rid=1045
Que a grafia influi na pronúncia das palavras é evidente, e como tal nem há mister demonstrar. Que esse influxo seja sempre e absolutamente decisivo já o será menos. Em todo caso, bem se deixa ver que quem se preocupa com o ensurdecimento da língua — e devíamos ser todos, e em primeiro lugar os mandatados para acordarem nestas questões, e não para adormecerem — pugne pela manutenção das letras que retardam esse fenómeno. Quem por si mesmo não vê nem reconhece isto, não vale a pena perder tempo e feitio a explicar-lho, pelo motivo intransponível de que ou não pode ou não quer percebê-lo.
— Montexto
Pior faz quem só pensa mal dos outros.
Para esse tal não haverá perdão: será, sem falta, mais um precito e precipitado nas profundas do Inferno dos malédicos, onde só conhecerá choro e ranger de dentes...
— Montexto
;-)
O único caso incontestável de influência direta da ortografia sobre a pronúncia é precisamente esse da grafia pseudoetimológica das palavras com sc. Não há mais. Nos outros casos que se brandem por aí, ou a influência é no máximo indireta (aliás, nem a do sc é direta; ver mais à frente) ou não se trata de um caso incontestável. O da pronúncia de en -> in é um destes últimos, porque se é verdade que em muitas zonas a pronúncia "rural" en- se "urbanizou" como in-, também é verdade que há zonas onde sempre foi in-. A pronúncia em en- é mais prevalente no Sul do país; a pronúncia em in- predomina no Norte (ao ponto de se dizer "inxada"). Pode-se interpretar este fenómeno de várias formas diferentes; a da influência da ortografia sobre a fala é só uma delas. Outras são o prestígio associado aos modos de falar da capital (ou das capitais), que lhes confere predominância sobre falares tidos como provincianos, e a influência imensa dos media audiovisuais ao longo do século XX, primeiro com o rádio e o cinema, mais tarde com a televisão.
A mim parece evidente que na esmagadora maioria dos casos as mudanças no modo de falar se devem a estes últimos fatores, não à ortografia. Até por uma questão tão óbvia que devia ser vista como lapalissiana por toda a gente: até meados do século XX, uma enorme proporção dos povos lusófonos era analfabeta. A ortografia não pode influenciar o modo de falar de um analfabeto, a não ser de forma indireta. Óbvio ululante.
Querem influenciar a fonética do português? Não se preocupem com a ortografia. Preocupem-se, isso sim, com a forma como a língua é utilizada nos media. É por isso, não por causa de mudanças ortográficas, sejam elas quais forem, que fenómenos tipicamente lisboetas como transformar leite em laite ou dizer que a adolescência começa aos treuze anos se vão espalhando pelo país como fogo em palha seca. Isso sim, influencia a pronúncia. A ortografia? Só muito por portas travessas ou não de todo.
E, ó Venâncio, futurologia é tentar adivinhar agora qual o caminho que um facto linguístico vai seguir no futuro. Mesmo que todas as propaladas influências ortográficas sobre a pronúncia fossem verdadeiras, estar agora a prever que o facto x vai causar y ou z é futurologia, queira você ou não queira. Não existe maneira de fazer essa previsão com um mínimo de rigor. O máximo que você pode fazer é analisar o passado e tentar perceber o que aconteceu e porquê. Pode estabelecer tendências históricas, e pode supor que essas tendências históricas vão continuar a desenvolver-se no futuro. Já aqui não pode passar da suposição, embora estas ainda tenham alguma base. Mas, perante um facto novo, pura e simplesmente não pode fazer previsões com mais substância do que os horóscopos da Maya.
Pensar é isto. Não é responder a alhos com bugalhos como você acabou de fazer. É olhar para factos sólidos e concretos e analisá-los. Devia ser a primeira coisa a ser ensinada na escola. Infelizmente não é nem a primeira nem a última, especialmente no campo das letras pois ainda há alguns professores por aí capazes de ensinar o método científico às criancinhas. É o que ainda vai salvando algumas.
Minha resposta, cumpre esclarecer, não era ao penúltimo comento do Montexto, que ainda nem estava disponível quando a escrevi.
Neste, como em muitos outros casos, não será só uma causa que explica o fenómeno: a mudança no falar sempre resultou de várias. Mas, hoje em dia, com a alfabetização que grassa grossa e grosseira, já não se pode contar com aquela velha virtude de não saber ler e escrever, de que falava mestre Aquilino, a qual muito contribuiu para a formação da língua, e alguns reis mais avisados do Médio Evo tanto cultivavam em si próprios, deixando o verbo para gentinha subalterna e adventícia. Agora a grafia assumiu mais importância porque toda ou quase toda a gente lê ou deletreia, quando não treslê, e merece mais atenção.
Eu, se tivesse responsabilidades oficiais na defesa da língua, preocupar-me-ia com todos os factores dessa mudança, portanto também com a grafia, — mas sem descurar as cabecinhas pensadoras, muitas das quais são agora mil vezes mais daninhas, e até fatais, à boa linguagem do que outrora as meramente analfabetas.
— Montexto
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