Tira, tira
«— Oxalá que não seja um trabalho que o ocupe durante todo o tempo em que estamos em casa a passar as férias da Páscoa — resmungou Maria da Luz. — Ele tem sempre uma missão secreta a cumprir quando menos convinha que a tivesse!» (A Aventura no Circo, Enid Blyton. Tradução de Vítor Alves. Lisboa: Editora Meridiano, Limitada, 1969, p. 8).
Na locução adverbial «oxalá que», apesar de seleccionar uma oração completiva, pode omitir-se a conjunção, e, a meu ver, até se ganha em expressividade. Aliás, até se compreende mal que se use, neste caso, a conjunção.
A propósito desta palavrinha, Fr. Francisco de S. Luiz, no seu Glossario das Palavras e Frases da Lingua Franceza, que por descuido, ignorancia, ou necessidade se tem introduzido na Locução Portugueza moderna; com o juizo critico das que são adoptáveis nella, afirma que no princípio das proposições optativas, imprecativas, etc., o que é construção francesa: «Que saiba todo o mundo os nossos amores! Que eu morra, se isto assim não é!»
[Post 4614]
13 comentários:
Helder, que houve com aquela entrada sobre o raio-X? Percebo agora que ela sumiu da lista do mês de março, mas consigo recuperá-la se uso a ferramenta de busca... Estranho.
Eliminei-a.
Por via de regra, pouco exceptuada, é como diz o Cardeal Saraiva (também lhe li o glossário). No português clássico esse «que» raro aparecerá. E é facilmente dispensável, como na frase da tradução em apreço. Aspando-o, não se perde nada. E, quando se pode eliminar algo na escrita sem se perder nada, elimine-se. Eu evito-o, e não me esforço muito. Viagens na Minha Terra terminam com uma frase introduzida por esse tipo de «que».
Garrett tem bastantes dessas frases. Ex: «— Que Deus arme de força a tua mão direita e ponha em tua alma a cólera de Suas vinganças!» (Arco de Santana, cap. XXI, p. 136, Porto Ed.). Suprima-se o «que», nada se perde, tudo se ganha.
Mais em cascada: «Que morra à morte ele! Que o seu nome fique desonrado e infame! Que lhe cuspam na face como a mim me cuspiram! Que assim como eu fui açoitada... fui, Vasco; tua mãe, filho, foi açoitada...», cap. XXI, p. 135.
Para se ver o cariz franciú deste «que», compare-se o pai-nosso nas duas línguas, com já fez Castilho António, também a propósito da ordem inversa congenial ao português, e da ordem directa própria do francês, citado por Caldas Aulete na sua gramática e Mário Barreto nos Fatos da Língua Portuguesa, 1982, cap. I, p. 29:
• «Que votre nom soit sanctifié»: sujeito, verbo: «Venha a nós o vosso reino»: verbo, sujeito.
• «Que votre règne arrive»: sujeito, verbo. «Venha a nós o vosso reino»: verbo, sujeito.
• «Que votre volonté soit faite sur la terre comme aux cieux»: sujeito, verbo, complemento atributivo «Seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu»: verbo, complemento atributivo, sujeito.
• «Donnez-nous aujourd'hui notre pain quotidien»: verbo, complemento objectivo. «O pão nosso de cada dia nos dai hoje»: complemento objectivo, verbo.»
Nada mais claro.
— Montexto
«Minha cara Juraci, muito obrigado pelos elogios e pelo entusiasmo demonstrado para com o sítio Sua Língua; a gente faz o que pode e o que sabe. Quanto à tua via de regra, é parte da expressão “por via de regra”, já dicionarizada pelo Aurélio, que ameaça substituir o nosso mais conhecido em regra (“em geral”, “normalmente”). Eu não gosto da expressão; não vejo nela nenhum ganho real sobre as que já existem no idioma. Além disso, para muitos leitores ela traz uma inevitável evocação pejorativa. Como és adulta, posso referir um exemplo pouco elegante: não lembro se foi o Nélson Rodrigues ou o Millôr (sei apenas que foi uma dessas cabeças privilegiadas), mas um deles conta o combate furioso e sistemático contra a expressão “via de regra” feito por um importante editor do jornalismo carioca dos bons tempos. Quando alguém ousava empregar esta expressão no texto de alguma matéria, ele ficava apoplético e saía gritando, no meio da redação: “Eu já disse mil vezes que a via de regra é a vagina!!!” (não preciso dizer que não era bem esse o termo com que o desbocado jornalista finalizava sua frase). Por tudo isso, faz com “via de regra” o mesmo que eu: não a uses. Segue a tua intuição inicial, que te fez achar esquisita a expressão, e manda-a às urtigas. Abraço. Prof. Moreno
P.S.: Recebi, pela volta do correio, uma colaboração oportuníssima de meu amigo Sérgio Mansur, de Belo Horizonte, leitor fiel e crítico incansável, que vem mais uma vez enriquecer o material desta página com suas observações onde jamais faltará uma ponta de ironia. Desta vez, ele nos faz o favor de identificar o jornalista que vetava o via de regra e acrescenta, com a sutileza necessária, outros detalhes picantes:
“Ora, Moreno, a história do iracundo jornalista corre por aí há anos. Era o Carlos Lacerda. Lenda ou não, contam que ele chamava o foca, logo no primeiro dia de trabalho na Tribuna da Imprensa, e dizia: “Meu filho, neste jornal, é proibido escrever duas expressões: “via de regra” e “por outro lado”. O foca perguntava por quê, e o Lacerda dizia com todas as letras: “via de regra é… [caixinha] e por outro lado é no… [símbolo químico do cobre].”»
Que o Pontífice lamba os pés das monarquias,/
Que Tartufo conspire e D. João seduza,/
Que a treva inunde a escola e a honra empenhe a blusa,/
Que flamejem do mal as rúbidas crateras,/
Que a tirania lance a liberdade às feras,/
Que haja ódios, traições, roubos, assassinatos,/
Que exerçam a justiça, os filhos de Pilatos,/
Que rezem cantochão as línguas das espadas,/
Que o direito e Bodin caiam das barricadas,/
Que o povo tenha frio e se revolte e chore,/
Que o trabalho produza e o capital devore,/
E o milhão seja enfim o rei universal –/
Que nos importa a nós? que importa o bem e o mal?/
As velhas dissensões, a luta, o dogma, a crítica?/
Os rouxinóis não têm opinião política.
.........................
Guerra Junqueiro, Introdução [A Morte de Dom João]
E depois? Eu não citei já Garrett a empregar o giro, autoridade bem maior que Junqueiro e qualquer outro, excepto meia dúzia de nomes dos sécs. XVI e XVII? E podia citar mais, que nem por isso tornam essa construção mais necessária e congenial à língua.
Se vos pelais por ela, usai-a, e sede felizes. Mas mostrai-me o uso frequente dessa construção nos bons clássicos do séc. XVI e XVII, se fordes capazes.
Quanto, a «via de regra», vou tomar nota desse apontamento de Cláudio Moreno, embora na expressão «por via de regra» não veja nada escabroso nem irregular na sua formação na língua, e parece que não emprestada. Millor e o grande Nélson melhor fariam em assestar as baterias contra outro muito contrabando que incluíram nos seus escritos. Expô-lo-ei no pelourinho mais ao diante. Não perde pela demora.
— Montexto
P.S. — Pensando melhor, nem vou tomar nota de coisíssima nenhuma, excepto da tolice de quem objurga a expressão «por via de regra»: ver imediata ou mediatamente, e sem mais, em «via» a «vagina», e em regra o «mênstruo», é de tarado sexual a pedir encarecidamente internamento urgente, seguido de psicanálise profunda.
— Montexto
Camilo, na obra O Carrasco de Vítor Hugo José Alves, usou a expressão «por via de regra», como se lê na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Mas em Camilo encontra-se de tudo.
Que dias ha que n’alma me tem po∫to
Hum não sei que, que na∫ce não ∫ei onde,
Vem não sei como, & doe não ∫ei porque.
Camões, Rhythmas, 1595.
Ao anónimo do comento anterior: Portanto, atiremos Camilo às urtigas, não é assim, caro anónimo? Fique sabendo que Camilo conhece mais de língua portuguesa a dormir a sono solto do que todos nós acordados e de dicionário na mão.
*
Caro Paulo Araújo, será preciso dizer-lhe que esse «que» camoniano não entende com o «que» em apreço. Quero crer que não, e que isso não passou de mero lapso seu. Não se canse a procurar, que dificilmente encontrará. Qualquer pessoa devia «sentir» em geral esse tipo de «que» como contrafeito.
Mas as leituras em línguas estrangeiras, não equilibradas com os nossos bons clássicos, redundam nisto. Acontece aos melhores, como o divino Garrett, cujas Viagens nunca me cansarei de ler e meditar.
Como digo e repito aos meus amigos, o remédio é o seguinte: «“Le soir, avant de me coucher, j’ai absolument besoin de lire trois ou quatre pages de bon français”; je crois qu’il a emporté Montesquieu», conta Maria Van Rysselberghe de André Gide, nos Cahiers de la Petite Dame, antologia publicada em 2006 na Folio, n.º 4425, p. 121.
Ora aí está: lede três ou quatro páginas de bom português antes do deitar, e nunca perdereis o contacto necessário. Ide pondo na mesa-de-cabeceira uns volumes da Lírica, da Vida do Arcebispo, dos Sermões, da Nova Floresta, a Carta de Guia, a Arte de Furtar, as Viagens: a quinta-essência da língua. Fora disto, vão-se adensando as trevas, em que o génio da língua se desgarra. Tanto mais agora, que o latim se foi, e o bom povo começou a «estudar» e a reger a sua loquela por periodiqueiros e outros intelectuais.
Dai-lhe as voltas que quiserdes...
— Montexto
Referi-me apenas ao primeiro 'que'; se for excluído em nada altera a construção da frase e o sentido. Está ali como expletivo dos tantos 'ques' e para completar a métrica; no meu sempre modesto pensar.
Mas não é o mesmo «que», Paulo, não é o mesmo «que». Esse «que» camoniano é exclamativo, ou melhor, está no princípio de proposição exclamativa, e é português lídimo; o outro, que está no princípio de proposições optativas ou imprecativas, para me servir dos termos do Cardeal Saraiva, é franduno.
— Montexto
«Oxalá» é, ao que julgo saber, aportuguesamento da locução interjectiva árabe «ânch Alá!» (aqui em transliteração livre) - «Queira Deus".
Assim sendo, o «que» passa a fazer algum sentido: «Queira Deus que...»
Pessoalmente, nunca construo a expressão com conjunção integrante.
Quanto ao «que» inicial, pode tolerar-se, dado que se subentende «[Desejo/quero] que o Pontífice lamba os pés das monarquias», etc. Aliás, há uma expressão perfeitamente vernácula e do mais português que se pode achar - e perdoem-me os olhos mais sensíveis: «Que se f*da!»
Haverá construção correspondente em francês?
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