19.4.11

«Um dos que/uma das que»

Uma das causas… que estão


      A emissão de ontem do Jogo da Língua não merece ser vilipendiada. Mas… «A frase correcta é a B: “Essa é uma das causas que estão na origem da doença.” E porquê? Portanto, hoje no nosso Jogo da Língua temos uma questão sintáctica. O verbo estar deve ser conjugado no plural, portanto, estão, uma vez que esta frase contém dois verbos, o verbo ser e o verbo estar, que têm sujeitos diferentes. O sujeito do verbo ser é o demonstrativo “essa”, e o sujeito do verbo estar é o relativo “que”, referente ao nome “causas”. Ora, uma vez que este substantivo “causas” se encontra no plural e esse relativo “que” se refere a “causas”, então o verbo tem de ser conjugado também no plural. Se nós invertermos a ordem dos elementos da frase, perceberemos melhor. “Das causas que estão na origem da doença, essa é uma delas.” Portanto, sempre que temos a expressão um dos que/uma das que, temos sempre de ter o segundo verbo no plural» (Jogo da Língua, Sandra Duarte Tavares. Antena 1, 18.04.2011).
      Já aqui tínhamos visto esta questão, também tratada por Napoleão Mendes de Almeida, que escreveu: «Um dos que — O verbo vai para o plural ou fica no singular conforme a ação verbal se refere a todos os indivíduos ou a um só» (Napoleão Mendes de Almeida, Gramática Metódica da Língua. São Paulo: Saraiva, 3.ª ed., 1965, p. 404).

[Post 4707]

23 comentários:

Anónimo disse...

Esse Napoleão teve aí a sua Waterloo.
— Montexto

Helder Guégués disse...

Gostava de conhecer a opinião de Fernando Venâncio sobre esta questão.

Anónimo disse...

Eu antecipo-lha, e aposto dobrado contra singelo que não me engano: realmente sente-se aí uma diferença entre um caso e o outro, entre o de a acção se referir só a um indivíduo e o de a acção se referir a todos.
— Montexto

Anónimo disse...

Nisto estou com o Napoleão. Mas é coisa que às vezes só o escritor saberá, mormente se for de área científica, e portanto desconhecida do comum das gentes. Esse mesmo exemplo: há que se saber, para bem conjugar o verbo, se de fato todas as causas (de quê?) estão na origem da doença, ou se apenas uma causa (de quê?) está. O maçete usado para justificar o verbo no plural, a inversão da frase, é tendenciosa e pode induzir a erro. Isso, claro, dependerá de a que se referem as tais causas.

Anónimo disse...

Ah, caro Kupo! Vai-me custar a refazer-me dessa.
— Mont.

Anónimo disse...

Ora, penso que o contexto deve sempre ser consultado para casos assim. Não é impossível pensar em exemplos em que se estivesse a falar de diversas causas, e que apenas uma estivesse na origem da tal doença. Talvez fosse então aconselhável lançar mão de outros expedientes para evitar confusões, como trocar "que" por "a qual", ou mesmo pontuar de outro modo. Mas sempre seriam sugestões, não mais.
Por ora não me sinto disposto a estender-me nessa questão, mas suponhamos qualquer outra frase, igualmente sem contexto: se fosse assim: "Este é um dos bichos que vai mancando." Se duas pessoas estivessem conversando sobre uns bichos quaisquer, e de repente lhes passasse pela frente um viralata. Um diria: "Ó, este é um dos bichos que vai mancando". Eu teria de dizer "que vão mancando"? Pois se outros eu nem sei se mancam!
Tenho a certeza de que o mestre Napoleão terá sabido explicar com melhores exemplos e mais propriedade, mas por ora é o que meu espírito consegue após um longo dia de trabalho.
Considerações?

Anónimo disse...

Ou dito de outro modo, eu poderia fazer como foi feito na inversão da frase: "Das causas [do quê?], esta é uma que está na origem da doença." E reorganizá-la em meu benefício. Ou não?
Não sei se me faço entender. Você pode apontar-me a falha lógica, que será mais edificante do que fazer troça. Só não fiquei satisfeito com a explicação dada ali por eles.

Anónimo disse...

Não estou a fazer troça, Kupo. Fiquei deveras surpreendido — e decepcionado — com a sua explicação. Eu lá lhe apontarei a falta de lógica. Por agora, deixemo-los pousar.
— Montexto

Venâncio disse...

Claro Helder,

Não é gralha. «Helder» é, nas línguas germânicas (as que me rodeiam), palavra corrente para «claro», «límpido», «luminoso».

Agradeço-lhe o apelo. Eu tinha saltado este «post», pois esta questão anda a deixar-me cheiinho até aqui.

Creio estar a repetir-me, mesmo no seu blogue. Mas aqui vai uma frase que demonstra, só por si, o escasso discernimento de quem a aceitasse. Esta:

Ele era um dos que cercava o caixão.

Anónimo disse...

É exactamente como diz Fernando Venâncio. Muito folgo de ter perdido a aposta.
Cândido de Figueiredo também tocou a questão nas suas Lições de Linguagem (que eu li e tenho, mas não comigo), e de modo sufragado pelo muito científico e pouco ameno José Leite de Vasconcelos. Vejam-se As Lições de Linguagem do Sr. Cândido de Figueiredo, em linha, já na parte final, p. 79.
— Montexto

Venâncio disse...

Montexto,

A distorção aqui em apreço não é, nem de longe, e como saberá, exclusiva do português. Encontro-a muito em espanhol, muito em neerlandês, muito em francês, e é quase certo que, na nossa grande família indoeuropeia, seja geral. Já discuti com gente (entre outros, um revisor) que me garantiu que eu estava errado. O anterior provedor do Público já dedicou uma página à questão. É, até certo ponto, uma luta perdida. Uma pessoa sente-se um génio só por fazer o óbvio.

Paulo Araujo disse...

...
O silêncio continuava. Interessados, os demais deputados se agrupavam em torno do orador, aguardando o desfecho daquela agonia, que agora já era, como no verso de Bilac, a agonia do herói e a agonia da tarde.
— Que é que você acha? — cochichou um.
— Acho que vai para o singular.
— Pois eu não: para o plural, é lógico.
O orador seguia na sua luta:
— Como afirmava no começo de meu discurso, senhor Presidente...
Tirou o lenço do bolso e enxugou o suor da testa. Vontade de aproveitar-se do gesto e pedir ajuda ao próprio Presidente da mesa: por favor, apura aí pra mim, como é que é, me tira desta...
— Quero comunicar ao nobre orador que o seu tempo se acha esgotado.
— Apenas algumas palavras, senhor Presidente, para terminar o meu discurso: e antes de terminar, quero deixar bem claro que, a esta altura de minha existência, depois de mais de vinte anos de vida pública...
E entrava por novos desvios:
— Muito embora... sabendo perfeitamente... os imperativos de minha consciência cívica... senhor Presidente... e o declaro peremptoriamente... não sou daqueles que...
O Presidente voltou a adverti-lo que seu tempo se esgotara. Não havia mais por que fugir:
— Senhor Presidente, meus nobres colegas!
Resolveu arrematar de qualquer maneira. Encheu o peito de desfechou:
— Em suma: não sou daqueles. Tenho dito.
Houve um suspiro de alívio em todo o plenário, as palmas romperam. Muito bem! Muito bem! O orador foi vivamente cumprimentado.

Texto extraído do livro "A companheira de viagem", Fernando Sabino. Ed. do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 139.

Anónimo disse...

Conste pois que, nos tempos que correm, o óbvio é o mais difícil de ver e discernir, ou o grande Nélson não lhe consagrasse um livro, e não tanto ao óbvio como ao óbvio ululante, e Lanza del Vasto não se visse necessitado a escrever outro sobre os «Principes et préceptes du retour à l’évidence».
Este caso da concordância de «um dos que…» pertence claramente a esta categoria do óbvio evidente e ululante, e por isso para os modernos será tão dificultoso de enxergar como a carta do conto de Edgar Allan Pöe.
1
Aproveite-se então a frase proposta por Fernando Venâncio: «Ele era um dos que cercava o caixão.»
Quem cercava o caixão? «Os que» ou, noutra formulação, «os quais», isto é, «aqueles que» ou, noutra formulação, «aqueles os quais». E assim: «os que» ou «os quais» ou «aqueles que» ou «aqueles os quais cercavam o caixão». E entre «aqueles que cercavam o caixão» achava-se «ele», que «era um dos que cercavam o caixão». Para «ele» ser «um dos» ou «um daqueles», é preciso que todos «aqueles cercassem o caixão». Se só «ele» cercava o caixão, então nunca se poderia escrever que «ele era UM DOS QUE rodeava o caixão», porque nesse caso o caixão só era rodeado por «ele», e «ele» era, sim, «UM QUE rodeava o caixão», e não «um dos que rodeava(m) o caixão».
Para «ele» ser «um dos que», é preciso que todos esses «os que» – de que «ele» faz parte, ou entre os quais se inclui — estejam no mesmo caso, incluindo «ele», ou seja, é preciso que todos, incluindo «ele», pratiquem ou sofram a mesma acção, levando o respectivo verbo ao plural, e então, sim, «ele» é um desses que fazem ou sofrem isto ou aquilo, — por exemplo, um dos que cercam o caixão.
Com a locução «um dos que», seguida de verbo a exprimir acção sofrida ou praticada pelo antecedente, o verbo vai muito lógica e gramaticalmente para o plural: porque precisamente são todos aqueles referidos por «dos que» — de que «um» é… um deles, de que «um» faz parte, de que «um» é… «um dos que» — que praticam ou sofrem a acção.
— Mont.

Anónimo disse...

2
Portanto, das duas, uma:
• ou era só «ele» que cercava o caixão, e nesse caso escreve-se: «Ele era “um que cercava” o caixão»;
• ou eram vários os que (ou aqueles que) cercavam o caixão, entre os quais «ele», e nesse caso escreve-se: «Ele era “um dos que cercavam” o caixão»;
• mas, com a locução «um dos que» neste caso, nunca se escreverá com lógica e gramática: «Ele era “um dos que fez” isto ou aquilo», porque neste caso quem fez isto ou aquilo são sempre vários, precisamente os abrangidos por «os que», «aqueles que», incluído o «um».
Nos melhores autores raro se encontrará a construção incorrecta ou irregular, e em geral os estudiosos da língua alinham pela advertência de Rodrigo de Sá Nogueira, no seu Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem, p. 364: «Um dos que fizeram. Um dos que fez – Diga-se: “eu fui um dos que fizeram”, “tu foste um dos que fizeram”, “ele foi um dos que fizeram”, “nós fomos uns dos fizeram”, “eles foram uns dos que fizeram”. Nunca se diga, como muitos fazem erradissimamente: “eu fui um dos que fez”, “tu foste um dos que fez”, “ele foi um dos que fez”,…, e muito menos ainda [porque maior é o solecismo, ou melhor, passam a ser dois] “eu fui um dos que fiz”, “tu foste um dos que fizeste”. – Cf. o artigo “Fui um dos que fiz”.»
*
Mas claro que bem se compreende de onde nasce este deslize, que não deixa de se explicar e defender (sem, quanto a mim, se justificar) durante os tais cinco minutos de que falava Cândido de Figueiredo. E será que, quando uma pessoa se refere a um dos que fazem isto ou aquilo, tem em mente mais esse «um» em particular, com cuja acção se preocupa, do que propriamente o grupo de que esse «um» faz parte, e de cuja acção se desinteressa, ou pelo menos não lhe importa salientar. A quem fala o que lhe importa maiormente é o que fez esse «um», e não os outros que o fizeram e apesar de o terem feito de igual modo. Nesta tragicomédia de «um dos que», o protagonista é «um»; o coro, «os que»; e o estimável público concentra a sua atenção no primeiro.
Evite-se, porém, quanto possível tal construção.

Mas na minha lista de leituras gramaticais inclui-se o estudo de Manuel de Paiva Boléo, intitulado «Língua falada, lógica e clássicos. A propósito da discussão ‘Um dos que...’», Cursos e conferências, 2, Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1935, pp. 77-94.
E já agora aponto estoutro do mesmo autor à curiosidade dos leitores, por vir o tema à baila neste blogue a cada passo: «O problema da importação de palavras e o estudos dos estrangeirismos (em especial dos francesismos) em português», Lições de linguística portuguesa, 1.ª parte, Coimbra, edição do autor, 1965, pp. 283-330.
— Mont.

Venâncio disse...

Óptimo, Montexto.

Mas creio que lhe escapou a água que a minha frase ("Ele era um dos que cercava o caixão") levava no bico. A frase era tudo menos inocente, ou anódina.

Ela destinava-se a mostrar, por via duma impossibilidade semântica, a inadequação de "Ele era um dos que cercava o caixão". Com efeito, uma pessoa nunca pode sozinha "cercar" um caixão.

E, se esta frase não é admissível, nenhuma das que usam esta estrutura o será. Chame-lhe uma demonstração pelo absurdo.

Paulo Araujo disse...

Não é tão absurdo, Venâncio; em uma procissão qualquer um de nós pode carregar o andor; finda a função, eu fui um dos que carregaram o andor.

Venâncio disse...

Não, Paulo.

Posso dizer Carreguei o andor, mas não posso dizer Cerquei o caixão.

Não concorda?

Venâncio disse...

Acrescento:

Posso pedir a alguém Carrega o andor, mas não posso pedir Cerca o caixão.

Há algum semântico na sala?

Paulo Araujo disse...

Prezado Venâncio, procurei dizer que concordo com sua construção provando a necessidade (às vezes) de o verbo ser 'carregado' para o plural. Nosso andores devem ser diferentes, porque os que conheço são carregados, praza Deus, por quatro fiéis, pelo menos; o risco de apenas um carregar é derrubar o santo, que Deus me perdoe a heresia e me proteja do risco que corro, na procissão, se alguém supuser que fiz de má fé. E como você bem sabe, todo problema de fé resume-se a fé de mais ou fé de menos.

Bic Laranja disse...

A semântica não sei; a imaginação diz-me que um oficial da G.N.R. pode pedir (melhor, ordenar) - «cerca o caixão!» - a um sargento da guarda p. ex. Este por sua vez encarregará um molho de soldados de o fazer.
Mas é melhor é deixar o morto em paz.

Venâncio disse...

Caro Paulo,

Fico na minha, embora não saiba explicá-lo. Por isso apelei a algum semanticista.

Eu sei que são precisas várias pessoas para carregar um andor, tal como várias são precisas para cercar um caixão. A questão é que cercar há-de conter traços semânticos que carregar não contém. E que elas são particularmente responsáveis pelo absurdo, pelo inconcebível, de «Ele era um dos que cercava o caixão».

Eu só suponho ter encontrado um exemplo extremo para convencer até os mais recalcitrantes.

Paulo Araujo disse...

Perfeito, Venâncio, eu entendi que é impossível um só fazer cerco, até a caixão (por mais que goste do 'defunctu'); seu exemplo é extremo, nada anódino ou inocente, uma espécie de 'casca de banana' onde se pode escorregar.
E viva nosso rico e complexo idioma!

Anónimo disse...

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• «ERRADO um dos que figurou (ele é um.....)
CORRECTO um dos que figuraram (ele é um.....)
ERRADO um dos que prefiro (eu sou.....)
CORRECTO um dos que preferem (eu sou.....)589

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589 A expressão “um dos que” leva o verbo para a 3.ª pessoa do plural» (D’Silvas Filho, Prontuário, Texto Editores, 3.ª ed. actualizada, p. 97).
• A isto só é necessário acrescentar: quando esse verbo exprime uma acção praticada (eu sou um dos que leram a Sintaxe de Epifânio) ou sofrida (a Sintaxe de Epifânio é um dos livros que foram lidos por mim) pelo antecedente «que», equivalente a «os quais», sujeito da oração.
• Porque após «um dos que» pode seguir-se um verbo que não tenha esse «que» por sujeito, mas por complemento directo, e nesse caso o verbo concordará com o sujeito singular ou plural:
— a Sintaxe de Epifânio é um dos livros que li eu;
— a Sintaxe de Epifânio é um dos livros que lemos nós.
*
2+2=4: quem com mais de 18 anos não atinge isto com facilidade, e continua com dúvidas, é deixá-lo lá com o seu destino: non omnia possumus omnes.
— Montexto