26.4.11

«Viste-la/viste-a»

A todos os reinícolas

      Na última emissão do programa Hotel Babilónia, a propósito de uma canção de Chico Buarque que foi censurada nos idos de 1975, disse João Gobern: «A parte instrumental passou; a parte da letra, viste-a.» Corte abrupto e de entono pedagógico de Pedro Rolo Duarte: «Viste-la
      Já sabemos que a conjugação dos verbos transitivos, seguidos do pronome o, a, os, as, obriga a substituir esta forma do pronome pela forma lo, la, los, las sempre que a flexão verbal termine em r, s, ou z. Ora, só pressupondo que João Gobern se estava a dirigir a várias pessoas é que seria essa a forma do pronome. Mas o programa é quase sempre um diálogo, um tu cá, tu lá que deixa os ouvintes de fora, não raro com piadas que só os próprios entendem.
      Leio em Sousa da Silveira (Obras de Casimiro de Abreu: revisão do texto, escorço biográfico, notas e índices. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955, p. 3): «Bocage, em vez de vós viste-los, que corresponde a vós vistes-los, usou vós viste-os, suprimindo a vistes o -s final.»
      Vejam este texto de Vasco Graça Moura sobre o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa: «Fui também aos autores que constam das fontes. O Garrett escreveu “cordura ousada” (Camões, I, VI). A “cordura” evaporou-se. Do Camilo, ocorreram-me “reinícola”, “tabardão”, “gasofilácio”, “às canhas”, “regambolear”. Nicles. Do Aquilino, foi a vez de “coitanaxa”. Salvo erro, é o Malhadinhas quem diz, às tantas, que da coitanaxa fez dona. Pois a coitanaxa tinha-se posto ao fresco, a ingrata. Procurei “mátria”, termo tão prezado por Natália Correia.  Viste-la. Mário de Carvalho emprega “ergástulo”. Ó Mário, a palavra evadiu-se...»
      «Gasofilácio» não está em nenhum dicionário recente — nem devia estar. A etimologia obriga-nos a escrever «gazofilácio» (lugar onde se recolhiam as esmolas para o culto, no Templo de Jerusalém), e é esta a grafia que se vê em todos os dicionários.

[Post 4728]

3 comentários:

Anónimo disse...

Ainda assim, muitas palavras se contêm nesse dicionário académico, mas eu é que fico sem nenhuma quando se trata de o adjectivar...
- Montexto

Anónimo disse...

A referência a Vasco Graça Moura lembrou-me agora uma particularidade de linguagem, que vi tocada primeiro cuido que por outro Vasco – o várias vezes aqui invocado Botelho de Amaral – e ultimamente por José Leite de Vasconcelos, na sua recensão das «“Lições de Linguagem” do Sr. Cândido de Figueiredo», que o caro Bic introduziu recentemente neste blogue, e para a qual reparei hoje que Helder já estabeleceu, em boa hora, uma ligação aqui ao lado.
Escreveu pois Graça Moura num belo artigo do «Diário de Notícias», de 20.04.2011, em linha, como aliás costumam muitos outros: «O PS de há muito que não tem memória.»
Cândido de Figueiredo já causticara este giro, e, segundo Leite de Vasconcelos, bem, mas, já antes dele, também Adolfo Coelho. E, com efeito, abre-se «A Língua Portuguesa», 1878, p. 91, em linha, e lá está «a expressão frequente, mas viciosa, “de há muito” por “há muito”.
“Há muito” fixa-se como a indicação dum tempo passado; “há” não é apercebido como verbo, mas como preposição (“a”); daí o antepor-se-lhe a preposição “de” por analogia de expressões como “de então” (para cá, até hoje), “de ontem”, “de muito”.»
- Montexto

Paulo Araujo disse...

O termo gazofilácio também foi usado metaforicamente para designar os dicionários tidos como tesouro de uma língua. O mais conhecido é o "Gazophylacium seu latino-illyricorum onomatum aerarium etc.", editado em 1740, em Zagrabia[sic].
Escrito pelo monge Joanis Bellosztenecz, é obra locupletíssima, com 40.000 entradas em 2.000 páginas, em 3 dialetos do idioma croata.