Vai indo
Recentemente, o crítico António Guerreiro, no Expresso/Actual («Contos, romances e equívocos», 9.06.2007, pp. 48-49), espantava-se com «a recepção complacente, o elogio unânime, com que o último romance [Combateremos a Sombra] de Lídia Jorge foi acolhido». E explicava porquê. Entre os muitos erros que apontava nesta obra, encontrava-se este: «E como não sentir que o pleonasmo de “Ao subir a Avenida de Santa Pulquéria acima” (pág. 19) parece quase um deslize ingénuo?» Erro é uma maneira de dizer: um pleonasmo é mais um defeito de linguagem. Nem sempre condenável: «Em todos os idiomas os reforços, os empregos sucessivos de palavras tradutoras de ideias afins, idênticas, semelhantes ou até iguais ocorrem com a maior frequência.
Por exemplo: toda a gente diz — vai indo. Vai indo é uma repetição do mesmo verbo — ir. E, no entanto, não é incoerente, linguisticamente.
O mesmo direi quanto a vir vindo:
“Ora, pois, primo Baltasar, parece-me que são horas de vir vindo o jantar.” (Camilo, O Santo da Montanha, III).
Escuso de repetir inúmeras expressões fixas, como viver vida, cavalgar (em) cavalo, etc., pois já no Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, no artigo sobre Pleonasmos, deixei referidas essas e tantas outras expressões de legítimas redundâncias.
Como nesse trabalho citei em Herculano cavalgar em cavalo, vem agora a propósito documentar com estoutro exemplo, para mostrar que, além de cavalgar em cavalo, também se pode dizer transitivamente cavalgar cavalo:
“Cavalgava um cavalo raudão.”
Assim leio eu, e toda a gente pode ler em O Monge de Cister, de Herculano.
Note-se esta redacção de Camilo, que escreveu muitíssimo bem, quando afirmou em O Santo da Montanha:
“…consumada a façanha, saiu a mãe a coroá-lo com uma coroa de louro.”
Coroar com coroa está mal? Engana-se redondamente quem acoimar de errónea tal expressão.
Convém, por outro lado, não deixar de ver que a redundância pode ocorrer não só com repetições de temas ou de palavras da mesma família, mas também com repetições de ideias, em virtude da precisão do reforço ou ênfase.
Aqui há tempos um ardina, ao ver o companheiro com umas calças que lhe davam um pouco abaixo da canela, disse-lhe para o arreliar:
— Vê lá se cais das calças abaixo.
Cair abaixo. Está mal?
Faça-se o exercício de tirar o abaixo nesta frase natural e ver-se-á que o poder descritivo da graça do rapaz perde 50 % do valor.
No entanto, há zelotes que imaginam ilógicas pela redundância expressões como cair abaixo, subir acima, etc., as quais já tive ocasião de defender e elogiar.
Há muita maneira de dizer que por vezes se julga um tremendo ilogismo, e, no entanto, bem analisada, vem a mostrar-se perfeitamente racional.
Quando se não adquire pelo estudo constante o domínio do idioma, quando se não compreendem as realidades da vida de linguagem com visão curada de miopias lógicas vem a fatalidade de se cair em fantasias de correcção, tão perigosas como as leviandades de indisciplina» (Vasco Botelho de Amaral, Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português, Editorial Domingos Barreira, Porto, 1947, pp. 432-434).
Recentemente, o crítico António Guerreiro, no Expresso/Actual («Contos, romances e equívocos», 9.06.2007, pp. 48-49), espantava-se com «a recepção complacente, o elogio unânime, com que o último romance [Combateremos a Sombra] de Lídia Jorge foi acolhido». E explicava porquê. Entre os muitos erros que apontava nesta obra, encontrava-se este: «E como não sentir que o pleonasmo de “Ao subir a Avenida de Santa Pulquéria acima” (pág. 19) parece quase um deslize ingénuo?» Erro é uma maneira de dizer: um pleonasmo é mais um defeito de linguagem. Nem sempre condenável: «Em todos os idiomas os reforços, os empregos sucessivos de palavras tradutoras de ideias afins, idênticas, semelhantes ou até iguais ocorrem com a maior frequência.
Por exemplo: toda a gente diz — vai indo. Vai indo é uma repetição do mesmo verbo — ir. E, no entanto, não é incoerente, linguisticamente.
O mesmo direi quanto a vir vindo:
“Ora, pois, primo Baltasar, parece-me que são horas de vir vindo o jantar.” (Camilo, O Santo da Montanha, III).
Escuso de repetir inúmeras expressões fixas, como viver vida, cavalgar (em) cavalo, etc., pois já no Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa, no artigo sobre Pleonasmos, deixei referidas essas e tantas outras expressões de legítimas redundâncias.
Como nesse trabalho citei em Herculano cavalgar em cavalo, vem agora a propósito documentar com estoutro exemplo, para mostrar que, além de cavalgar em cavalo, também se pode dizer transitivamente cavalgar cavalo:
“Cavalgava um cavalo raudão.”
Assim leio eu, e toda a gente pode ler em O Monge de Cister, de Herculano.
Note-se esta redacção de Camilo, que escreveu muitíssimo bem, quando afirmou em O Santo da Montanha:
“…consumada a façanha, saiu a mãe a coroá-lo com uma coroa de louro.”
Coroar com coroa está mal? Engana-se redondamente quem acoimar de errónea tal expressão.
Convém, por outro lado, não deixar de ver que a redundância pode ocorrer não só com repetições de temas ou de palavras da mesma família, mas também com repetições de ideias, em virtude da precisão do reforço ou ênfase.
Aqui há tempos um ardina, ao ver o companheiro com umas calças que lhe davam um pouco abaixo da canela, disse-lhe para o arreliar:
— Vê lá se cais das calças abaixo.
Cair abaixo. Está mal?
Faça-se o exercício de tirar o abaixo nesta frase natural e ver-se-á que o poder descritivo da graça do rapaz perde 50 % do valor.
No entanto, há zelotes que imaginam ilógicas pela redundância expressões como cair abaixo, subir acima, etc., as quais já tive ocasião de defender e elogiar.
Há muita maneira de dizer que por vezes se julga um tremendo ilogismo, e, no entanto, bem analisada, vem a mostrar-se perfeitamente racional.
Quando se não adquire pelo estudo constante o domínio do idioma, quando se não compreendem as realidades da vida de linguagem com visão curada de miopias lógicas vem a fatalidade de se cair em fantasias de correcção, tão perigosas como as leviandades de indisciplina» (Vasco Botelho de Amaral, Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português, Editorial Domingos Barreira, Porto, 1947, pp. 432-434).
2 comentários:
Já que foram apresentados alguns pleonasmos, aproveito para mencionar outros, muito utilizados.
Certeza absoluta.
Chorar lágrimas.
Encarar de frente.
Entrar para dentro.
Filho varão.
Hemorragia de sangue.
Mel de abelha.
Melhor morrer do que perder a vida.
Obviamente lógico.
Países do mundo.
Par de gêmeos.
Sair para fora.
Sorriso nos lábios.
Alguns pleonasmos viciosos :
Cego dos olhos
Maluco da cabeça
Hemorragia de sangue
Pessoa Humana
Unanimidade de todos
Última versão definitiva
Acabamento final
Amanhecer o dia
Surpresa inesperada
Conviver junto
Encarar de frente
Gritar alto
Certeza absoluta
Elo de ligação
Dupla de Dois
Verdade verdadeira
Olhar com os olhos
Prefeito municipal
Isto é um fato real
Multidão de Pessoas
Estréia pela primeira vez
Países do mundo
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