Imagem: http://www.qanamassacre.org/
Confusões bíblicas
Ontem, um leitor (peixeiro?) deixou-me aqui a pergunta: «Qaná, Caná e Canaã também mereciam uma posta, ou não?» Merecem, pois, que a confusão já é muita.
«Sobreviventes das famílias Hasham e Shalhoub, que procuraram abrigo na cave de um edifício em Qana, Sul do Líbano, começaram ontem a contar o seu drama, depois de um ataque israelita que causou mais de 50 mortos, 37 dos quais crianças» (Qana. O drama de duas famílias», Maria João Guimarães, Público, 1.08.2006, p. 2).
«A União Europeia aumentará hoje a pressão para o fim das hostilidades no Líbano, ainda sob o choque do ataque israelita à aldeia de Caná, que provocou 56 mortos, incluindo 37 crianças» («UE pedirá cessar-fogo imediato no Líbano», Fernando de Sousa, Diário de Notícias, 1.08.2006, p. 12).
A restante imprensa regula pelo mesmo: ora Caná ora Qana. Para agravar, ainda nos vêm falar de Canaã.
Bem, pese embora as diferenças — 50 mortos, num caso, 56, no outro —, parece tratar-se da mesmíssima قانا, a 10 quilómetros de Tiro e a 12 da fronteira com Israel. Não me choca nada que se escreva «Qana», porque afinal também se escreve «Qatar» — algum jarreta que propusesse «Catar» seria sumariamente julgado e executado. «Qana» é a grafia preferida dos anglo-saxónicos: «Displaced families had been sheltering in the basement of a house in Qana, which was crushed after a direct hit» (BBC). Contudo, essa é que é essa, قانا é a Caná, o Lugar dos Juncos da Bíblia, terra natal de Natanael e a povoação do primeiro milagre de Jesus: transformar água em vinho, durante uma boda (Jo 2,1-11).
Quanto a Canaã, finalmente, não sei porque é que o meu leitor a põe a par das outras duas. A também bíblica Canaã* ou Canã, כנען em hebraico (baixo, plano), não é uma localidade, mas um território situado entre a Síria e o Egipto, no qual se estabeleceram os Israelitas.
* Citei aqui recentemente a obra Dificuldades da Língua Portuguesa, do filólogo M. Said Ali. Este longo extracto é da mesma obra: «Assam, Annam, Siam e nomes asiáticos em -ão. Raríssimos nomes geográficos da Ásia escrevemos, sem hesitar, com -ão final: Japão, Cantão, Damão, Ceilão, Jordão, Hindostão. Daí por diante começa a incerteza ou a grafia decididamente diversa. Já ao lado de Hindostão (devera ser Hindostan) temos a península do Dekhan, que não nos decidimos a escrever “Decão”. Conservamos o nome bíblico Jordão, mas com flagrante incoerência, desde que, por outro lado, preferimos a forma Canaã a Canão, que Gil Vicente rimava com “perfeição” e “conjunção”. O nome Cantão, que se dá a uma cidade da China, tem uma história bem curiosa. É um ajeitamento aceito na Europa (salvo novos ajeitamentos: Canton, Kanton), que acudiu aos Portugueses para o termo chinês Kuang-tung (= “Largo Oriente”), nome não da própria cidade, mas da província costeira de que é capital e porto. A cidade chamam-lhe os Chins Kuang-tchu-fu» (p. 156, ortografia actualizada por mim).
Confusões bíblicas
Ontem, um leitor (peixeiro?) deixou-me aqui a pergunta: «Qaná, Caná e Canaã também mereciam uma posta, ou não?» Merecem, pois, que a confusão já é muita.
«Sobreviventes das famílias Hasham e Shalhoub, que procuraram abrigo na cave de um edifício em Qana, Sul do Líbano, começaram ontem a contar o seu drama, depois de um ataque israelita que causou mais de 50 mortos, 37 dos quais crianças» (Qana. O drama de duas famílias», Maria João Guimarães, Público, 1.08.2006, p. 2).
«A União Europeia aumentará hoje a pressão para o fim das hostilidades no Líbano, ainda sob o choque do ataque israelita à aldeia de Caná, que provocou 56 mortos, incluindo 37 crianças» («UE pedirá cessar-fogo imediato no Líbano», Fernando de Sousa, Diário de Notícias, 1.08.2006, p. 12).
A restante imprensa regula pelo mesmo: ora Caná ora Qana. Para agravar, ainda nos vêm falar de Canaã.
Bem, pese embora as diferenças — 50 mortos, num caso, 56, no outro —, parece tratar-se da mesmíssima قانا, a 10 quilómetros de Tiro e a 12 da fronteira com Israel. Não me choca nada que se escreva «Qana», porque afinal também se escreve «Qatar» — algum jarreta que propusesse «Catar» seria sumariamente julgado e executado. «Qana» é a grafia preferida dos anglo-saxónicos: «Displaced families had been sheltering in the basement of a house in Qana, which was crushed after a direct hit» (BBC). Contudo, essa é que é essa, قانا é a Caná, o Lugar dos Juncos da Bíblia, terra natal de Natanael e a povoação do primeiro milagre de Jesus: transformar água em vinho, durante uma boda (Jo 2,1-11).
Quanto a Canaã, finalmente, não sei porque é que o meu leitor a põe a par das outras duas. A também bíblica Canaã* ou Canã, כנען em hebraico (baixo, plano), não é uma localidade, mas um território situado entre a Síria e o Egipto, no qual se estabeleceram os Israelitas.
* Citei aqui recentemente a obra Dificuldades da Língua Portuguesa, do filólogo M. Said Ali. Este longo extracto é da mesma obra: «Assam, Annam, Siam e nomes asiáticos em -ão. Raríssimos nomes geográficos da Ásia escrevemos, sem hesitar, com -ão final: Japão, Cantão, Damão, Ceilão, Jordão, Hindostão. Daí por diante começa a incerteza ou a grafia decididamente diversa. Já ao lado de Hindostão (devera ser Hindostan) temos a península do Dekhan, que não nos decidimos a escrever “Decão”. Conservamos o nome bíblico Jordão, mas com flagrante incoerência, desde que, por outro lado, preferimos a forma Canaã a Canão, que Gil Vicente rimava com “perfeição” e “conjunção”. O nome Cantão, que se dá a uma cidade da China, tem uma história bem curiosa. É um ajeitamento aceito na Europa (salvo novos ajeitamentos: Canton, Kanton), que acudiu aos Portugueses para o termo chinês Kuang-tung (= “Largo Oriente”), nome não da própria cidade, mas da província costeira de que é capital e porto. A cidade chamam-lhe os Chins Kuang-tchu-fu» (p. 156, ortografia actualizada por mim).
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