De outiva
A partir de determinada idade, dir-se-ia, as palavras homófonas* deixam de constituir um problema. Pelo menos, para quem não é analfabeto funcional. (A propósito, comungo inteiramente da opinião de que nunca se deverá fazer dobragens em Portugal, pois em muitos casos as legendas serão as únicas palavras, tirando a correspondência, os talões do Multibanco e a omnipresente publicidade, que algumas pessoas lêem em toda a vida.) Ontem, alguém escreveu qualquer coisa como «[…] da reforma cluniacense, traduzida na riqueza mobiliária — na altura incalculável — dos cálices, báculos, crossas e relicários». Logo se afirmou que havia ali um erro indesculpável: a ortografia da palavra assinalada, no sentido que o contexto exige, é croça. Ora, não é assim ou não é tão simples. Ainda no último programa do Prof. José Hermano Saraiva (infelizmente sem legendas…), lá apareceu uma croça: a capa de palha que se usa no campo para se abrigar da chuva. Ou terá sido uma crossa? Foi uma croça, não há dúvida. Há um relativo consenso sobre a matéria.
E no caso que cito, o do báculo episcopal, como deverá ser? Croça ou crossa? Aqui sim, há dúvidas. Se o étimo for o francês crosse, crossa deverá ser. Se for do baixo latim crocia, devemos grafar «croça». Domingos Vieira, que a dá como proveniente do baixo latim crucia ou crocia, regista a ortografia croça (ou coroça, como variante). O mesmo e pelas mesmas razões diz Plácido Barbosa, entre outros. Por outro lado, não podemos esquecer que há quem lhe dê como étimo o germânico krukkja, o que legitimaria igualmente a grafia croça. Enquanto não houver um conhecimento mais aprofundado do étimo, prefiro seguir — até para ser coerente com a preferência pela locução crossa da aorta**, que já me vi na contingência de ter de escrever — a forma registada no Dicionário Houaiss: crossa.
* Relembro a definição: palavras homófonas são aquelas que têm o mesmo som, mas se escrevem de forma diferente, como «à», contracção da preposição com o artigo, e «há», forma do verbo haver. Podemos distinguir, como fazem os Brasileiros, entre homófonas heterográficas (ou, entre nós, apenas homófonas), que são as palavras que se pronunciam da mesma forma, mas que se escrevem de forma diferente, como acento e assento; aço e asso; cem e sem; censo e senso; cerrar e serrar; cervo e servo; cessão e sessão; cinto e sinto; concelho e conselho; coser e cozer; era e hera; nós e noz; paço e passo; vós e voz; etc., e homófonas homográficas (ou, entre nós, homónimas), que são as palavras que se escrevem e pronunciam da mesma maneira, mas têm significado diferente, como amo (verbo) e amo (substantivo); canto (verbo) e canto (substantivo); cedo (verbo) e cedo (advérbio); conto (verbo) e conto (substantivo); rio (verbo) e rio (substantivo); saia (verbo) e saia (substantivo), etc.
** É curioso, na verdade, que ninguém tenha dúvidas em designar o arcus aortae como «crossa da aorta», pela semelhança, a curvatura, que tem com o báculo episcopal. Neste caso, parece não haver dúvidas de que o étimo é o francês.
A partir de determinada idade, dir-se-ia, as palavras homófonas* deixam de constituir um problema. Pelo menos, para quem não é analfabeto funcional. (A propósito, comungo inteiramente da opinião de que nunca se deverá fazer dobragens em Portugal, pois em muitos casos as legendas serão as únicas palavras, tirando a correspondência, os talões do Multibanco e a omnipresente publicidade, que algumas pessoas lêem em toda a vida.) Ontem, alguém escreveu qualquer coisa como «[…] da reforma cluniacense, traduzida na riqueza mobiliária — na altura incalculável — dos cálices, báculos, crossas e relicários». Logo se afirmou que havia ali um erro indesculpável: a ortografia da palavra assinalada, no sentido que o contexto exige, é croça. Ora, não é assim ou não é tão simples. Ainda no último programa do Prof. José Hermano Saraiva (infelizmente sem legendas…), lá apareceu uma croça: a capa de palha que se usa no campo para se abrigar da chuva. Ou terá sido uma crossa? Foi uma croça, não há dúvida. Há um relativo consenso sobre a matéria.
E no caso que cito, o do báculo episcopal, como deverá ser? Croça ou crossa? Aqui sim, há dúvidas. Se o étimo for o francês crosse, crossa deverá ser. Se for do baixo latim crocia, devemos grafar «croça». Domingos Vieira, que a dá como proveniente do baixo latim crucia ou crocia, regista a ortografia croça (ou coroça, como variante). O mesmo e pelas mesmas razões diz Plácido Barbosa, entre outros. Por outro lado, não podemos esquecer que há quem lhe dê como étimo o germânico krukkja, o que legitimaria igualmente a grafia croça. Enquanto não houver um conhecimento mais aprofundado do étimo, prefiro seguir — até para ser coerente com a preferência pela locução crossa da aorta**, que já me vi na contingência de ter de escrever — a forma registada no Dicionário Houaiss: crossa.
* Relembro a definição: palavras homófonas são aquelas que têm o mesmo som, mas se escrevem de forma diferente, como «à», contracção da preposição com o artigo, e «há», forma do verbo haver. Podemos distinguir, como fazem os Brasileiros, entre homófonas heterográficas (ou, entre nós, apenas homófonas), que são as palavras que se pronunciam da mesma forma, mas que se escrevem de forma diferente, como acento e assento; aço e asso; cem e sem; censo e senso; cerrar e serrar; cervo e servo; cessão e sessão; cinto e sinto; concelho e conselho; coser e cozer; era e hera; nós e noz; paço e passo; vós e voz; etc., e homófonas homográficas (ou, entre nós, homónimas), que são as palavras que se escrevem e pronunciam da mesma maneira, mas têm significado diferente, como amo (verbo) e amo (substantivo); canto (verbo) e canto (substantivo); cedo (verbo) e cedo (advérbio); conto (verbo) e conto (substantivo); rio (verbo) e rio (substantivo); saia (verbo) e saia (substantivo), etc.
** É curioso, na verdade, que ninguém tenha dúvidas em designar o arcus aortae como «crossa da aorta», pela semelhança, a curvatura, que tem com o báculo episcopal. Neste caso, parece não haver dúvidas de que o étimo é o francês.
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