11.11.08

À volta de «merologia»

Macacos me mordam…


      … se não é o mesmo que lamentar que não se escreva «philosofia». Ou quase. Conto o caso. No De Rerum Natura, o filósofo Desidério Murcho publicou ontem um texto, «Incompetência linguística, oportunismo e mentira política», em que ataca forte e feio os fautores do Acordo Ortográfico, escrevendo, entre outras sábias coisas, o seguinte: «O mais triste de tudo isto é o tempo que se perde nestas tolices. Precisamos de dicionários e gramáticas de qualidade e praticamente não os temos. Os dicionários de língua portuguesa, brasileiros e portugueses, têm muitos disparates sempre que falam de filosofia, por exemplo. Além disso, não contemplam muita terminologia filosófica crucial, apesar de se apressarem a incluir todas as tolices que um idiota qualquer diz na rua ou escreve num jornal popular. Aparentemente, a produção académica é para os nossos dicionaristas menos importante do que a produção de disparates linguísticos em jornais diários: aceita-se que “agenda” quer dizer “objectivo político”, à inglesa, mas não temos grafados nos dicionários termos como “mereologia” (a excepção honrosa é o insuperável Aurélio), uma área da filosofia que já era estudada no tempo dos gregos antigos.»
      Bem, muitas palavras faltam nos dicionários, e algumas tão úteis como «merologia». Esta, contudo, parece perseguir obsessivamente o filósofo, pois há onze anos procurou demonstrar ao Ciberdúvidas porque estava errado escrever, como os dicionários de língua portuguesa fazem, «merologia». Respondeu-lhe então F. V. Peixoto da Fonseca: «“Mereologia” não existe em português; o vocábulo estaria mal formado, porque o prefixo grego não contém o [sic]. Curiosamente, não encontrei o termo com eo em nenhuma das línguas investigadas, incluindo o inglês. Portanto, merologia é que está certo. Quanto a teleologia, não vem para o caso, porquanto o prefixo não é telos, mas teleos, com outro significado.»
      Quanto a não ter encontrado registado noutras línguas, foi azar ou pouca diligência do consultor. Quanto a «mereologia» estar mal formado, estamos de acordo. Segundo pude saber, foi o lógico e matemático polaco Stanisław Leśniewski (1886–1939) quem, em 1927, cunhou a palavra. E se é composta com o antepositivo grego μέρος (méros, «parte»), não sei, nem sabem classicistas de mérito, de onde vem o espúrio e que ali se intromete. (Sim, excelentíssimos classicistas, poderia ser o genitivo singular neutro, méreos, mas este aparece sempre contracto, mérous.) Donde se conclui que a palavra não falta nos dicionários.
      A ser como o filósofo pretende, vocábulos como meroblasto, merócito, merocracia, meropia, meroplâncton, merotropia e muitos outros «cultismos das biociências», como o Dicionário Houaiss os define e regista, estariam errados, e não estão. O Vocabulário da Língua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves, regista «merologia» e «merológico».

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