16.12.10

«Demais/de mais»

Agora é que é


      «Afinal não é ainda tarde demais para os ursos-polares. Esta é a boa notícia de hoje na Nature, que faz capa do tema a partir de um artigo de cientistas dos Estados Unidos e do Canadá. O seu estudo indica que, se as emissões de gases com efeito de estufa forem reduzidas nas próximas duas décadas, as grandes extensões de gelo do Pólo Norte, que são o habitat destes animais, têm grandes hipóteses de não desaparecer do mapa» («Ainda há tempo para salvar os ursos-polares», Filomena Naves, Diário de Notícias, 16.12.2010, p. 30).
      E como escreveriam, na frase acima, os meus leitores: demais ou de mais? Por demais explorada e mastigada, é ainda assim uma questão gramatical que importa rememorar.

[Post 4197]

16 comentários:

Anónimo disse...

Neste caso, é «demais», pois está a quantificar o advérbio «tarde».
Concordo com a explicação dada em http://ciberduvidas.sapo.pt/pergunta.php?id=24660
Já sobre os casos considerados no post de 4/6/2010 («por demais» ou «por de mais»), inclino-me também para o «por demais», pois ali está-se a quantificar dois adjectivos. Gostaria, no entanto, de conhecer outras opiniões.

Anónimo disse...

1
Não sei se será…
Há dois anos, no Bar do sempre vitorioso PCP, em Beja, deparou-se-me esta doutrina de Regina Rocha no «Diário do Alentejo», de 03.10.2008, que copiei resumida para um guardanapo, e depois daí para o dicionário: «*Advérbio de modo: “demais”: exprime intensidade e significa “muitíssimo, excessivamente, em demasia, demasiadamente”; emprega-se intensificando formas verbais, advérbios e adjectivos. Ex: “Ele fala demais, ele é frágil demais (= muito frágil), ele fala bem demais” (= muitíssimo bem). * Locução adverbial: “de mais”: exprime ideia de quantidade, e não de intensidade; igual a “a mais”. Ex: “Comprei livros de mais; são de mais os livros que tenho para ler” (= são livros a mais); o chá tem açúcar de mais.» E acrescentei uma nota: «Verificar esta distinção nos clássicos. Em geral advérbios e as locuções adverbiais equivalentes têm o mesmo significado, ex: de repente, repentinamente.»
A distinção não me parece mal, tendo a segui-la, cuido que é reiterada pela mesma Senhora e outros consultores no Ciberdúvidas, mas, se bem me lembro, nem a prática dos clássicos a autoriza, nem todos os dicionários se entendem a este propósito, parecendo nestes sentidos mais frequente o uso de «de mais» em Portugal, e de «demais» no Brasil, como creio que também se adverte numa resposta do Ciberdúvidas, e se aponta no último Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa; e tendo sido também bastante usado entre nós «demais» no sentido de «ademais, além disso».
Assim, a título de amostra desta variação ou não total coincidência, pode ler-se:
no venerando Dicionário de Morais, ed. de 1789 (uma das duas autênticas; a segunda é de 1813): «“Demais”, v. mais § “Por demais”, i e. debalde “por demais são razões” Palmeir. Dial. 2. Além disso.» E em «“Mais” […] § “De mais”, além do número; além disso. § “Por de mais”, i. e. inutilmente v.g. “por de mais é cançar”». (Note-se já aqui a variação de «por demais» e «por de mais», que se vai prolongar, e a ausência da forma «demais» como advérbio.)
na Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (na parte de língua portuguesa, a melhor obra do meu conhecimento e gosto neste género), p. 530: «”Demais”, adv. Em excesso; muitíssimo: “Sabemos que nunca é demais a pureza e que a afeia a mais leve mancha”, Mário Barreto, “Cartas Persas”, 26, p. 26. [Atente-se, para efeito do que acima se disse, em que Barreto é brasileiro.] * Além disso, outrossim: “Demais os grandes banqueiros… adoptaram… outra… extremamente profícua à moral”, Ramalho Ortigão, “John Bull”, cap. 2, 26.» E na pág. 971, entrada «Mais»: «“de mais”, em quantidade excessiva: nunca se tem saudade de mais; homem muito rico que tem dinheiro de mais; “Então adeus, Joaninha. Eu estou de mais aqui», Garrett, “Viagens na Minha Terra”, II, cap. 35, p. 97.»
no Dicionário da Porto Editora, 8.ª ed: «”Demais” adv. muitíssimo, intensamente; excessivamente, em demasia; além disso.»
no Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, 1990: «”Demais”, adv. Além disso. // “Por demais”, em excesso, em demasia. “De mais”, loc. adv. Em demasia; em excesso.»
no Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa: «”Demais”. 1. Além disso; de resto. “O incêndio alastrava no prédio; demais, havia perigo de explosão. 2. Bras. Em demasia; em excesso. = de mais, demasiadamente, excessivamente. “A escola é longe demais. Comer demais. 3. Bras. Muitíssimo; intensamente. “Ele te ama demais”.»
no «Prontuário», de D’Silvas Filho, 3.ª ed., p. 40: «incorrecto: é demais; correcto: é de mais. Incorrecto: foi longe demais; correcto: foi longe de mais. Incorrecto: tem folhas demais; correcto: tem folhas de mais.»
- Montexto

Anónimo disse...

2
E até na grafia de «por demais, por de mais» há discrepâncias:
. Dicionário de Morais: tanto «por demais» como «por de mais», como se viu, mas sempre no sentido de «debalde, inutilmente».
. Enciclopédia Portuguesa e Brasileira: «por demais» (no sentido de «em excesso, em demasia: é por demais estúpido para compreender isto»; e, mais curioso quanto a mim, também no referido sentido já registado por Morais de «Debalde, inutilmente: isto basta, o resto é por demais; “Quando já não se acha cura, toda a cura é por demais”, Camões, “El-Rei Seleuco”, in “Obras”, IV, 26»).
Dicionário da Porto Editora: «por de mais».
. Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa: «por demais».
Dicionário da Academia: «por de mais».

E o mesmo se diga da grafia de «demais a mais, de mais a mais»:
. Enciclopédia Portuguesa e Brasileira: «de mais a mais», com abonações do Bernardes e Camilo (eu próprio me lembro desta forma amiudada em Camilo).
. Dicionário da Porto Editora: «demais a mais».
. Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa: «de mais a mais».
. Dicionário da Academia: «demais a mais».

«Ad libitum»: cada um reúna os seus entes de razão e conclua por si. Mas parece-me que quem seguir a lição de Regina Rocha fará bem, e quem não a seguir não fará mal.
- Montexto

Anónimo disse...

Há uns anos tive oportunidade de me debruçar sobre este assunto, recolhendo informações em fontes diversas. O panorama que se me apresentou foi mais ou menos o que o Montexto tão bem verteu nos comentários anteriores: uma grande confusão e opiniões contraditórias, que pareciam permitir qualquer combinação que nos passasse pela cabeça. Quando, mais tarde, a Regina Rocha exprimiu a sua opinião no Ciberdúvidas, pareceu-me que estava a tentar pôr alguma ordem nas coisas. E como a sua interpretação, para além de fazer sentido, acabava por ser compatível com a maioria das fontes que eu tinha consultado antes (claro que algumas ficavam inevitavelmente de fora), decidi acolhê-la e guiar-me por ela. É o que tenho feito, e aconselho a fazer. A menos que se prefira a balbúrdia total.

Helder Guégués disse...

Também concordo com a explanação de Regina Rocha, e até acho que devia ser consagrada, como doutrina (o que agora, apesar dos ares que se dá, não é), numa reforma ortográfica. A confusão, que já vem de longe, é completa, e todos perdemos com isso. Entretanto, concluo como Montexto: «quem seguir a lição de Regina Rocha fará bem, e quem não a seguir não fará mal». Chamo a atenção para o facto de já aqui me ter ocupado desta questão gramatical, sobretudo com o fito de abalar os alicerces do actual fundamentalismo que manda usar de mais como sinónimo de «demasiado» e demais como sinónimo de «outras, outros; restantes».

Anónimo disse...

Leio em Almeida Garrett, O Arco de Sant’Ana, Porto Editora, 1990:
• «— Vindes cedo hoje. — Cedo de mais sempre eu venho. Quem está cá?», IV, 26.
• «— Parece-me, se me dais liberdade, que o deixais senhorear-se de mais de vossa afeição, e que lhe não podereis ir à mão quando quiserdes», VI, 40.
• «Pêro Cão, hábil político e homem quase parlamentar, viu que a discussão se ia tornando séria de mais e podia desmoralizar a maioria», VIII, 50.
Exemplos tais e quejandos são dos mais encontradiços. Factos da língua, como diria Mário Barreto, que a propósito deles e das teorias que os querem endireitar ou torcer tem um bom dito, que fica para a próxima, se o encontrar.
— Montexto

Helder Guégués disse...

É uma edição moderna. Importava saber como está no original.

Anónimo disse...

Acabo de o verificar na 1.ª edição do Arco nos livros digitalizados em linha, Biblioteca Nacional: no 1.º exemplo grafa-se «de mais»; no 2.º, «demais»; no 3.º, «de mais».
Mas apostava dobrado contra singelo que quem tiver a pachorra de contar as ocorrências de ambas as formas apurará a larga predominância de «de mais».
É um facto familiar a quem quer que vá conversando a literatura clássica.
— Montexto

Anónimo disse...

A julgar pelos três exemplos referidos, e caso se confirme noutros, dir-se-ia que Garrett usava «de mais» para quantificar adjetivos e advérbios, e «demais» para quantificar formas verbais. E, se porventura outros exemplos não corresponderem a esta interpretação, teremos de concluir que o autor escolhia uma ou outra possibilidade tendo como guia, apenas, a fase da Lua na data em que escrevia.

Anónimo disse...

Apesar de oficialmente romântico, Garrett tinha uma boa costela clássica e sensata: o mais certo é nunca ter pensado no assunto, obediente ao aviso de D. Francisco Manuel: «coisas tão miúdas não é bem que pejem o pensamento de um homem».
- Montexto

Anónimo disse...

Mais uns exemplos deste príncipe das letras pátrias:
• «Gertudes era a valida [...] de todos os ciclopes da Rua de Sant’Ana, os de seu pai adoravam-na. Boa, oficiosa para todas, impunha-lhes, de mais a mais, por um certo ar de superioridade, e para assim dizer (perdoem-me a aristocracia da frase) de fidalguia natural, que é a mais rara, a mais preciosa, a mais verdadeira [...]», O Arco de Sant’Ana, Porto Editora, 1990, IX, p. 55, assim também na 1.ª edição;
• e este exemplo levado da breca: «Pois que outra coisa amotinaria este leal, paciente e bom povo da nossa cidade, se não for alguma vexação nova que lhe fizestes? Apertais de mais, muito de mais às vezes, o torniquete fiscal, meu pobre Pêro. [...] Olhai, Pêro Cão, mugis-me muito a vaca, muito de mais... e eu não quero sangue no tarro», ib., XIV, 79, e outrossim na 1.ª edição, excepto o último, que vem grafado «demais»: «mugis-me muito a vaca, muito demais».
(Note-se de passagem que entre nós apertar o torniquete fiscal em demasia já vem de longe, e de tão endémico passou até à literatura.)
— Montexto

Anónimo disse...

E agora outro mais próximo:
«- Mas você não gosta de estar aqui?
- Ná. Aqui faz frio, não vê? O povo aqui vive afobado de mais» (Alçada Baptista, «O Tempo nas Palavras», Presença, 2000, p. 32, «Da "Aculturação"», etc., crónica de 28.III.1972.
- Montexto

Anónimo disse...

E casos destes é que fizeram assentar Mário Barreto («Através do Dicionário e da Gramática», 4.ª ed., XLVII, p. 253, que acabei anteontem de ler muito de espaço) em que «Em matéria de linguagem, o mais que se pode dizer é que tal palavra ou frase não se usou nunca em português, que vai contra o idioma ou está em perfeita conformidade com ele, que soa a galicismo ou a barbarismo. Querer que se diga assim ou assim é frase sobremodo arrogante e imperativa, que jamais usei nem tenho direito a usar. Não quero ser do número dos que assumem catadura de "juízes", quando não passam de pobres pecadores como nós outros, tantas vezes "réus" de lesa-linguagem». E (XXVII, p. 154-155) «Não me apraz emaranhar-me nas teias da análise lógica. Não me atrevo a rejeitar nenhuma construção que o uso geral tenha sancionado, nem a emendar as "absurdas" ou pospor as menos lógicas, nem a submeter enfim a um minguado critério de filosofia fácil a sutilíssima filosofia da linguagem. Fujo do caminho dos nossos gramáticos filósofos que, empenhados em encerrar nos cânones duma análise convencional a admirável complexidade do nosso idioma, fulminam severos anátemas contra tudo que se não encaixa nos seus estreitos moldes».
E por aqui me cerro.
- Montexto

Anónimo disse...

Talvez depois dessa você mesmo fique menos severo.

Anónimo disse...

Severo eu? Eu já disse que do que gosto é de dizer bem. O que eu sou é um incompreedido.
- Montexto

Anónimo disse...

«Incompreendido» - e desatento à grafia das palavras, pelos vistos.
- Montexto