«PJ suspeitou de que Evaristo fosse traficante» (Miguel Ferreira, Diário de Notícias, 23.11.2010, p. 23).
Vê-se este erro também nos livros, mas na imprensa, pela ignorância catalisada pela pressa, é muito mais encontradiço. É até erro com nome: dequeísmo. O verbo suspeitar, à semelhança de outros, só se constrói com complemento oblíquo ou preposicionado quando encerra um grupo nominal («suspeito dos seus conhecimentos gramaticais»), mas já não é assim quando ocorre com uma completiva, como no caso acima: PJ suspeitou que Evaristo fosse traficante.
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17 comentários:
Lamento diversificar mais uma vez, mas não há tal erro. Pode-se dizer das duas meneiras - «suspeitar que» e «suspeitar de que» , que se dirá sempre bem. Estão no mesmo caso outros muitos verbos, como «acreditar», já exprobrado neste blogue - ao meu parecer, sem razão, como então observei - «informar, prevenir, gostar», etc.
O fenómeno está explicado amplamente por Mário Barreto em mais de um passo de «Através do Dicionário e da Gramática», com abonações dos melhores autores, alguns dos quais já aqui trasladei em anterior tema, e que agora não tenho comigo. Basta consultá-lo.
Mas daqui a pouco torno ao assunto.
- Montexto
Não me parece que haja dequeísmo em «suspeitar de que». Diria mesmo que é construção mais correcta do que «suspeitar que». O mesmo para «duvidar».
Certíssimo, cara Sofia. Já vamos confirmar isso.
- Montexto
No Brasil, o erro mais comum é o queísmo. O Houaiss explica os dois casos.
O Montexto e a Sofia têm razão. De resto, O Helder dá implicitamente a regra: quando se suspeita DE alguma coisa, suspeita-se, também, DE QUE algo aconteceu.
Só posso lembrar aquela frase d’O Monge de Cister: «Passam por nós momentos de idiotismo, em que a nossa alma parece dormitar.» Da mesma página, recordo também estoutra: «Importa, que tambem eu tenho revelações que te fazer, e o nome dessa mulher, suspeito que não é inteiramente alheio aos successos que vaes ouvir. Como se chama ella?» (A. Herculano, O Monge de Cister, 11, 321)
Valha-me Deus!
Herculano disse bem, quando escreveu «suspeitei que», e teria dito bem se escrevesse «suspeito de que». No mesmo caso estão verbos como «gostar, advertir, informar, certificar, prevenir, folgar, duvidar, contentar», etc., que tanto se constroem só com «que» como com «de que». E o mesmo se diga da partícula «em», com verbos como acreditar, crer, e também folgar, atentar, advertir, reparar, contentar», que regem «de» e «em», e alguns até «com». Em todos estes casos, quando a qualquer dos referidos verbos se segue, não um nome, mas uma oração finita introduzida por «que», a partícula ou preposição, seja ela «de» ou «em», que liga tais verbos à oração, tanto pode declarar-se como calar-se.
Veja-se, para já, a preposição «de» na «Enciclopédia Brasileira», em que se consigna que a prática da omissão da partícula era até mais frequente nos clássicos. E Mário Barreto é quase exaustivo sobre isto no «Através do Dicionário e da Gramática».
Só se a idiotia tomou toda esta gente, incluindo os autores em que se louvam. Não é provável.
Vejam-se os próximos capítulos.
- Montexto
Caro Helder,
1. Os clássicos são muito elásticos.
2. A nova hipercorrecção é evitar DE QUE, por medo de que se pense de que...
Veja que pensamentos natalícios nos assaltam!
Haja quem corrija os correctores, seja lá isso o que for.
Não lembra ao Diabo uma pessoa deixar-se guiar por correctores automáticos em coisas de substância e melindre como a santa sintaxe.
Guiai-vos também por conjugadores de verbos internéticos: todos os que encontrei juram a pés juntos e mui contestes que a 1.ª pessoa do plural do presente do conjuntivo de verbos ler e crer é leiamos e creiamos.
Lindo serviço! Podem assoar-se à parede.
- Montexto
E encontrar-se-á algum fora da Internet que diga algo diferente?
Ora, ora! Lá me parecia a mim que o pessoal já estava todo a embarcar naqueloutro engano de alma ledo e cego de considerar boas e boníssimas as tais formas. Se até já vêm no meu bom «Aurélio», 2.ª edição!
Mas lá está Rodrigo de Sá Nogueira, no seu «Dicionário de Verbos Portugueses Conjugados», Cássica Editora, 8.ª ed., pp. 121 e 218, a lembrar que as formas correctas são «creamos» e «leamos».
E assim também Augusto Moreno, nos «Estudos de Língua Pátria», III, «Como Falar - Como Escrever», vol. I, Editora Educação Nacional, 1941, p. 87:
«P [ergunta]. – Escreve-se “leamos, leais, creamos, creais”, ou “leiamos, leais, creiamos, creiais”?
R[esposta]. – “Leamos, leais, creamos, creais”, sem “i” de alargamento. Tal “i”, nestes verbos, só se intercala antes de “a” ou ”o” átonos que precedem desinência pessoal, como em “creio, creias, creia, leio, leia”, etc. Ora nas formas da consulta, o “a” que antecede as desinências é tónico, e não átono.»
E, se dúvidas subsistissem, já muito antes o consagrado, e para mim sagrado, Epifânio Augusto da Silva Dias, a quem o próprio Mário Barreto chamou «grande, exímio, inolvidável», as deixou desfeitas na sua «Gramática Portuguesa Elementar», Livraria Escolar de A. Ferreira Machado & C.ª – Editores, 1894, p. 59: «As formas “creiamos, creiais”, são muito modernas e incorrectas; as formas antigas e verdadeiramente correctas eram as regulares “creamos, creais”. Outro tanto se tem de dizer com respeito às formas “leiamos, leiais” do verbo ler.»
Ora as formas erradas não são o meu forte: só se passarem por cima … da minha ignorância.
- Montexto
Calma, Montexto. Disso que afirma já eu tinha notícia. Dicionários de verbos actuais não registam essas formas, e a sapiência de alguns de nós alcança essa ignorância.
Uma das características distintivas do erro costuma ser a actualidade. «Delenda» os dicionários de verbos actuais. Ou então uivemos com a alcateia.
- Montexto
QUE ou DE QUE em casos como SUSPEITO DE QUE ERRAS e SUSPEITO QUE ERRAS e outros que tais – I
1
Antes de mais e melhor que tudo, consulte-se Mário Barreto, «Através do Dicionário e da Gramática», em vários lugares, e no capítulo sobre o verbo prevenir, que está no caso do verbo suspeitar e outros do mesmo género, e que, segundo este eminente sintacticista e os autores de primeira plana em que se estriba, admite as construções com «de», «de que» e «que» em passos como o de Herculano, citado neste blogue.
Quem não disponha desta obra visite ou revisite o que deixei dito a propósito da «regência do verbo acreditar» neste blogue, dia 24.11.2010.
Donde se colherá que a boa doutrina, assente nos factos da língua, manda aceitar ambas as formas, calando ou declarando a partícula «de» antes de «que». A razão é óbvia, nem é preciso dar muitas voltas ao miolo para descortinar: celeridade e menor esforço.
2
A seguir, consulte-se a «Enciclopédia Portuguesa e Brasileira», na preposição «de», em que além do mais se lerá a observação de que é costume, mais praticado pelos clássicos, omitir esta partícula em passos como os aqui tocados.
3
Augusto Gil, «Luar de Janeiro», 9.ª ed., Ática, MCMXLV, p 75, citado no «Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa», 2.ª ed., 1986, que também traz o verbo suspeitar com outras construções, incluindo a de «suspeitar que»: «Sem suspeitarem de que alguém os visse/, Trocaram beijos ao luar tranquilo.»
4
Camilo Castelo Branco, «O Livro Negro de Padre Dinis», 4.ª ed., Porto, Paulo Podestá, Editor, 1880, p. 218, citado no «Aurélio»: «Em todas as povoações o informavam de que o duque passara duas horas antes.»
5
Cândido de Figueiredo, «N ovas Lições Práticas da Língua Portuguesa», Livraria Ferreira, 1893, p. 57: «A primeira dúvida é sobre a vernaculidade da locução – “Informaram na repartição competente, de que…” Eu diria: – Informaram a repartição de que … – Ou: – Informaram, na repartição competente, que …»
6
Rodrigo de Sá Nogueira, «Dicionário de Erros e Problemas de Linguagem», nas «Obras Completas de R. S. N.», Clássica Editora, 3.ª ed., 1989:
. P. 89: «Certificar de que, certificar-se de que – Diga-se: “Certifiquei F… ‘de’ que recebi a carta” e “F… certificou-se ‘de’ que recebi a carta”. Não se diga: “Certifiquei F… (sem a preposição ‘de’) que recebi a carta.” Do mesmo modo diga-se: “Assegurar-se ‘de’ que”, “Convencer-se ‘de’ que.”»
. P. «Duvidar de que – Diga-se “eu duvido ‘de’ que isso tenha acontecido”, com a preposição “de”. Não se diga, pois, “eu duvido que isso tenha acontecido”, sem a preposição “de”. Quem duvida “duvida ‘de’ alguma coisa”, e não duvida “alguma coisa”. – Cf. os artigos “Estar convencido de que”, “Estar certo de que”, “Estar seguro de que”.»
. P. 221 «Informar de que – Não se diga: “Informo V. Ex.ª que recebi a sua carta”; “Informo-o que o meu filho já partiu”; “Ele informou-me que desiste da sua pretensão”. – Diga-se: “Informo V. Ex.ª ‘de’ que recebi a sua carta”; “Informo-o ‘de’ que o meu filho já partiu”; “Ele informou-me ‘de’ que desiste da sua pretensão”. – Quem se informa informa-se “de” alguma coisa. – Semelhantemente diga-se: “Assegurar ‘de’ que, convencer ‘de’ que, certificar ‘de’ que.”»
7
Augusto Moreno, «Estudos de Língua Pátria», III, «Como Falar – Como Escrever», vol. I, p. 38: «P. – Lembrar-se “que” ou lembrar-se “de que”? – R. – A sintaxe plena e verdadeiramente lógica é a da segunda maneira. Quem se lembra lembra-se “disto” ou “daquilo”, e não “isto” ou “aquilo”. Sem embargo, em óptimos escritores encontra-se muitas vezes suprimida a preposição.»
- Montexto
QUE ou DE QUE em casos como SUSPEITO DE QUE ERRAS e SUSPEITO QUE ERRAS e outros que tais – II
8
Lauro Portugal, «Gente Famosa também Dá Pontapés na Gramática», Roma Editora, 2.ª ed., 2005:
. P. 67 e 73, 77, «convencido de que», e não «convencido que»;
. P. 70, «ter a certeza de que», e não «ter a certeza que»;
. P. 73, 87, «não tenho dúvida de que», e não «não tenho dúvida que»;
. P. 89, «daquilo de que estamos convencidos», e não «daquilo que estamos convencidos»;
. P. 96 «aquilo de que gosto», e não «aquilo que gosto» nem «o que gosto»;
. P. 103, «informe-os de que não vamos, e não «informe-os que vamos».
9
Vasco Botelho de Amaral, que deixei para o fim de propósito, pelo interesse destas suas observações, extensíveis a vários casos do mesmo naipe, e que é bom ter presente.
. «Estudos Críticos da Língua Portuguesa, 2 Contra os Gramáticos», Edição do Autor, 1948, p. 215 e 216: «A transitividade e a intransitividade, as regências, o emprego dos verbos como activos, como neutros, como reflexos, como pronominais”, etc., tudo isso dificilmente pode ser sistematizado rigidamente, porque o estilo muita vez rompe com as normas consideradas inflexíveis.
Os maiores autores surpreendem por vezes com boleios sintácticos que os dicionaristas não registam.
Por exemplo, obedecer (já o disse eu mesmo) não pode empregar-se como transitivo directo. No entanto, eu li em Vieira: «nem a deus se podem perguntar os porquês: “obedecê-los” sim, muda e cegamente.» («Sermões», pág. 49, ed. 1748).
Outra redacção inesperada: «quem “se não concorda com ele?”» («Sermões», pág. 89, ed. 1748, XV).
A expressão geral pode regular certa sintaxe; a expressão de um autor pode registar um meneio especial. Só os gramáticos tacanhos considerarão “deficiência” a fuga acidental à sintaxezinha costumeira.
Eu, a orientar quem não sabe, aconselho a que “obedecer” não se use como transitivo directo. Mas não ouso criticar Vieira, diante daquela sua redacção.
É tão legítimo redigir “aludir que” (= “aludir a que”) como legítimo é escrever “persuadir a que, persuadir que, persuadir de que, etc.
Há entre gramática e estilística um abismo profundíssimo», etc. [Eu não acho que seja assim tão profundo, mas enfim, isso são outras guerras...]
. «Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português», Livraria Simões Lopes, 1947, p. 130: A propósito de um leitor que julgava errada certa locução: «Ora aqui está uma doença psicológica um tanto grave: a preocupação exagerada do erro. Há pessoas que em tudo vêem erros.»
Depois disto, se alguém persistir em considerar única válida a locução «suspeitar que, duvidar que, informar que, assegurar que, certificar que, prevenir que», e outras que tais, está no seu direito pessoal, fundamental e inalienável, como nos ensina a Constituição, e como fazia já não sei que parlamentar inglês, que ouvira milhares de discursos, e confessava que poucos mudaram a sua opinião, e nenhum o seu voto. Mas lembra-me a anedota do condutor que seguia pela auto-estrada, quando avisaram pela rádio que nessa via circulava um carro na contramão (como diz o «Aurélio»), e ele: «Um?! São mil, homem! Mil!»
- Montexto
P. 153: «Duvidar de que» e «Deus», com maiúscua, claro. Para o bem ou para o mal, não somos o valter hugo mãe.
- Mont.
«QUE», «DE QUE»: ÚLTIMO CAPÍTULO
Sobre este tema de regência verbal, e mais precisamente da regência de verbos como os acima referidos, e mais precisamente ainda do emprego da partícula «de», declarando-se ou calando-se quando se lhe segue proposição iniciada por «que», leia-se «O Modernismo Brasileiro e a Língua Portuguesa», de Luiz Carlos Lessa, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1966, «Segunda Parte, cap. 1, Regência Verbal», p. 199 e ss., de que traslado os seguintes passos:
«O que torna embaraçosa esta matéria não é apenas o fato de, frequentemente, um mesmo verbo admitir diferentes construções, variando o seu significado de acordo com a alteração da regência. É também, e sobretudo, uma tal ou qual facilidade que os verbos manifestam de, conservando o mesmo sentido, evoluírem quanto a regência, passando de intransitivos a transitivos, ou de transitivos directos a indirectos, e vice-versa. […]
A evolução constante – destino inelutável dos idiomas – é, portanto, particularmente sensível e constatável em matéria de regência verbal, e aqui, mais talvez que em muitos outros pontos, urgiam pesquisas na literatura hodierna. [….]
É frequente, na língua portuguesa, a elipse da preposição “de” antes da conjunção integrante.
Além das construções “avisar que”, “convencer que”, “esquecer-se que”, “informar que”, “lembrar-se que”, às quais se encontram referências neste capítulo, também são bastante usuais frases como “tenho certeza que”, “temos a impressão que”, “não há dúvida que”, “corre a notícia que”, “gostaria que” […], “e poderia suspeitar-se que falava sozinha…” (C. Drum. And., 111).
É bem verdade que a todas essas frases se poderia aplicar o que escreveu Aires da Mata Machado Filho, referindo-se a “avisei-o que” e “informei-o que”: “Tal sintaxe deixa a impressão de coisa mal acabada” (“A Correção na Frase”, p. 95). Por isso mesmo, parece-nos que será desejável que se procure evitar essa omissão do elemento prepositivo antes da conjunção integrante “que”. Mas não se poderá dizer que erram os que praticam a elipse em apreço.»
O que, segundo Luiz Carlos Lessa e Aires da Mata Machado Filho, precisa de justificação e tolerância é a elipse da preposição “de” antes da integrante “que”, e não o seu emprego. Mais clarinho não conheço.
Mas nem sei para que é tanto livro, doutor e autoridade para coisa tão comezinha, correntia e corriqueira: o mero, humilde, mas raro (ao revés do que afirmava Descartes, de quem muito me custa dissentir neste ponto, mas lá terá de ser), bom senso e a imprescindível sensibilidade («Jane Austen for ever») , coadjuvado pela higiénica leitura dos clássicos e outros autores que se dignaram aprender a sua língua, bastam a pôr as coisas nos seus consuetos e devidos eixos.
O dói reside nisto: quem compulsa hoje, já não digo com mão diurna e nocturna, mas com honesta regularidade, as veneráveis páginas de Bernardim, H. Pinto, Sousa, Arrais, Lucena, Vieira, Melo, Bernardes, da «Arte de Furtar» e Castilho? Pois só com estes e alguns mais à cabeceira se conhecerão não só as estradas reais, mas também os atalhos, veredas e caminhos de pé posto da língua portuguesa.
Montexto
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