21.12.10

Topónimo: «Cardife»

É pena


      «A polícia britânica prendeu ontem 12 homens suspeitos de estarem a preparar um ataque terrorista, numa série de operações policiais ao amanhecer em Inglaterra e no País de Gales. A polícia de West Midlands informou que cinco dos suspeitos foram detidos na cidade galesa de Cardiff, quatro em Stoke-on-Trent e três em Londres» («Polícia prende 12 suspeitos de planear ataque terrorista», Patrícia Susano Ferreira, Destak, 21.12.2010, p. 13).
      Durante décadas e décadas, na imprensa o que se lia era Cardife. Até Eça de Queirós usava com esta grafia. É ver também as portarias do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Estado Novo. Agora consultamos o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora e que vemos? Isto: «cardife nome masculino designação da hulha proveniente de Cardiff, capital do País de Gales».

[Post 4209]

12 comentários:

Anónimo disse...

E lembre-se, meu caro, de que ainda há poucos dias lhe chamou pulcro! O que o coiso é ou passou a ser é um desaguadouro de vozes inglesas, já nem anglicismos, mas grossos, grosseiros e escarrados empréstimos, a maioria grafada como se nada as estremasse das outras.
- Montexto

Helder Guégués disse...

Ironia, Montexto, ironia.

Anónimo disse...

Bem. Lá me escapou essa, então. «Mea culpa.»
- Montexto

Anónimo disse...

Ele há casos que deixam a gente de olhos em bico, sem acabar de crer no que vê.
Por exemplo: «Ando preocupado com a força da cultura luso-brasileira [...]. Esta coisa indefinida [...] aparece e vê-se ao longe. A primeira vez que realizei o fenómeno foi quando, há alguns anos, cheguei a Berlim [...].
Perpetra isto Alçada Baptista, um dos melhores a meu juízo, no Tempo nas Palavras, Presença, 2000, p. 31.
Fica um cristão a cogitar no que foi preciso acontecer para se incrustar no bicho do ouvido e na mioleira de uma criatura nada e criada em Portugal, e ainda por cima homem de letras, a palavra «realizar» no sentido de compreender, e não chega a «realizar» de modo algum.
Se fossem só os jornalistas...
— Montexto

Venâncio disse...

«Sem acabar de crer no que vê», ó Montexto? «A meu juízo»?

Eu sei que o nosso (ou o seu...) português clássico tem estranhos, tanto mais estranhos quanto naturais, pendores castelhanizantes.

Mas nada susterá a queda?

Anónimo disse...

Agora a coisa pega fogo!

Anónimo disse...

Caro Venâncio,
A que queda se refere? É que me palpita que antes se tratará de uma ascensão.
«Não acabar de crer» no sentido de «não conseguir crer, custar a crer», etc., e «a meu juízo» no sentido de «a meu ver, no meu ver, a meu perecer, no meu ver, em minha opinião», etc., etc., são portugueses estremes, velhos e relhos, lídimos e legítimos, sem mácula de exotismo de casta alguma. Os exemplos são a flux, basta abrir a «Portuguesa e Brasileira», já conhecida dos leitores deste blogue.
Mas — mais uma vez — que foi preciso acontecer neste país e nesta língua para até um literato da polpa do meu crítico estar naquele engano de alma ledo e cego a respeito de locuções tão comezinhas? É o que nunca jamais ninguém acabará de compreender.
Os Senhores não lêem Camões, Sousa, Vieira, Bernardes, Melo, Camilo? Pois qualquer pessoa que os frequente, sequer moderadamente, lá os topará.
Quase apetecia repetir com Mário Barreto, mutatis mutandis: «Se o nosso crítico estivesse costumado a ler clássicos, não lhe veríamos, nas crónicas que lhe encomendou um grande diário, empunhar a catana contra palavras e frases muito portuguesas: talho daqui, revés dacolá, gilvás um atrás de outro, a combater sonhados erros» (Através do Dicionário e da Gramática, 4.ª ed., XXXVI, 205).
E sobre a reiterada dúvida e o espanto manifestados neste blogue sobre a genuinidade de algumas expressões, por terem equivalente idêntico em castelhano (ou até em francês), também já aquele mestre teve ansa de explicar o que para o discreto é o óbvio ululante: «Em línguas vizinhas há grande número de modos de dizer, tipos de frase, processos, que parecem copiados uns dos outros; e contudo é a isso que chamamos idiotismos. Há um paralelismo, uma comunidade de processos, que trai uma analogia de pensamento e uma comunidade de civilização» (ib., XVIII, 107). «Quem quer que saiba dois dedos de português e de francês não pode ignorar que, sendo neo-latinas, as duas línguas hão-de ter muitas parecenças morfológicas» (ib., XXIV, 139).
O triste disto tudo para mim é que nesta nossa boa terra permanecemos sempre condenados a explicar as primeiras letras, a basezinha, o ABC, como desabafou já não sei quem, talvez António Sérgio ou José Bacelar. «After changes after changes, we are more or less the sames».
Enfim, quanto ao «português clássico», meu ou de quem quer que seja, atento o estado a que se chegou nestas coisas, devia ser recebido de braços abertos, porque o que abunda é o oposto: «A excitação que tem percorrido e conduzido a sociedade é, toda ela, uma manifestação de oposição ao classicismo, ao que era adquirido, ao estilo — embora essa oposição seja feita de em nome de mil “estilos”. Minada a razão, rejeitada a ordem, sem que outros valores e gostos engrandecidos lhes tomassem, naturalmente, os lugares, a língua teria de ser banalizada. Vivemos numa escala de erros. Como seria possível escrever sem eles? Mesmo os que lutam contra a degradação e a vulgaridade fazem-no com sarcasmo porque este é, ainda, um sinal de vida perante a mortal iliteracia» (Victor Cunha Rego, Os Dias de Amanhã, Contexto, 1999).
Saudações cordiais.
Montexto

Venâncio disse...

Caro Montexto,

Eu tinha uma vontade imensa de tentar convencê-lo de que NÃO ACABAR DE, com significado de «não conseguir», nos chegou acabadinho de Castela. Mas vou dominar-me. Terei larga ocasião de fazê-lo, no livrinho que preparo sobre a castelhanização histórica do nosso idioma.

No entanto, para não deixá-lo a aguar, ofereço-lhe estes passos das «Cartas» de Vieira, não o menor dos nossos castelhanizantes, que lhe permitirão apreciar o pitéu como fruta duma época felizmente revoluta.

Não acabar de significa hoje, tão- só, «não parar de». Tente colar este significado às passagens abaixo, e veja se não foi bom termos deixado Castela a falar sozinha.


«A resolução de Inglaterra nos tem suspensos, e o não acabar de se declarar parece que dá esperanças de tudo se poder compor.»

«Contudo, ainda esta cidade padece muito, e tarde tornará ao antigo, por falta de navios e não acabar de vir o novo governador.»

«E, contudo, tão incrédulo ou tão infiel o amor da vida, que não acabo de crer, ou me persuadir ao que não posso deixar de crer.»

«[...] posto que se murmura não estão as suas raízes tão fortes e seguras como noutro tempo, o que eu não acabarei de crer senão quando o vir.»

«A paz de Génova não acaba de se concluir, e os avisos de Veneza continuam a nos ameaçar na Itália com uma armada turquesca de duzentas velas.»

«Eu espero que nos há-de vir a saúde por mãos de nossos inimigos, e que há-de obrar a necessidade o que não acaba de fazer a razão.»

Um abraço,
Fernando

Anónimo disse...

Meu Caro Fernando Venâncio,
Convenhamos em duas coisas: 1.ª, ainda que esse verbo ou giro viesse do castelhano, desde que foi usado penas como as de Luís de Camõs, Luís de Sousa, António Vieira, Francisco Manuel de Melo, Manuel Bernardes, Camilo, quase de certeza Castilho, e decerto outros, fará sntido continuar a taxá-lo de castelhanismo? 2.ª, ainda que, de mais disso, fosse também um arcaísmo, que mal vai à língua em repescá-lo num tempo em que se peca continua e maiormente por neologismos?
Enfim, eu contra Castela nada tenho, antes pelo contrário, e,se de alguma coisa a noto nos últimos tempos, é de já o não ser como soía.
Um abraço e bom natal.
- Montexto

Anónimo disse...

«usado por penas» e «fará sentido», claro. Sou o rei das gralhas.
- Mont.

Venâncio disse...

Caro Montexto,

Há castelhanismos e casetlhanismos. Eu não tenho (como você também não) qualquer fobia, só uma sã reserva. Mas o facto é que o português acabou por eliminar o giro. Suponho por colidir com o sentido, mais literal, de «não parar de».

Infelizmente, esse mecanismo não funciona na perfeição. Veja o que se passa com APARENTEMENTE. Significava «só na aparência», até que (suponho que pelos anos 60) se introduziram as traduções directas (e servis, e parvas) de APPAREMMENT e de APPARENTLY, com o sentido de «pelos vistos», «segundo tudo indica».

Hoje, frases como «Ele aparentemente é rico» tornaram-se um pesadelo.


Bom Natal também para si.

Anónimo disse...

Nota:
O verbo «acabar» no sentido de «conseguir» está tratado por Mário Barreto nos «Novíssimos Estudos da Língua Portuguesa», 3.ª ed., 1980, p. 217-221, em que o aponta como de uso clássico (assim como o «Dicionário» da Academia das Ciências de Lisboa, mas de 1976, costituído por um só volume de 678 págs consagradas só às palvras iniciadas pela letra "a"), de modo algum castelhanismo, e usado por Luís de Sousa, o escritor mais puro da lingua portuguesa, António Ferreia e António Feleciano de Castilho.
- Montexto