Não se pode escolher
«No fim do segundo dia, todos falaram no depoïmento do índio Joe; era evidente e claro, e não havia a menor dúvida àcêrca do que seria a decisão do júri» (As Aventuras de Tom Sawyer, Mark Twain (tradução de Berta Mendes. Lisboa: Editorial Inquérito, 1944, p. 206). Ainda no dia 8 foquei aqui esta questão da grafia antiga da locução prepositiva «acerca de». Esta tradução foi publicada nas vésperas da Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945, ainda na vigência da ortografia saída dos trabalhos de Gonçalves Viana, e considerada a mais coerente e profunda reforma ortográfica, aproximando a ortografia daquela que temos hoje, e que representou, pelo menos em parte, um regresso à ortografia fonética da Idade Média. De fora ficou o Brasil, entrincheirado na vetusta ortografia pseudo-etimológica que alguns em Portugal ainda hoje queriam.
Mais alguns excertos da mesma obra, em que abundam os acentos diferenciais: «— Tomás Sawyer, ¿onde estava no dia 7 de Junho, cêrca da meia-noite?» (idem, ibidem, p. 209). E eis os pontos de interrogação invertidos, de que já aqui falei: «— ¿Então porque não dás? ¿Porque dizes que dás e não dás? Tens mêdo!» (idem, ibidem, p. 20). O emprego da forma verbal «quere» (que só com o Acordo Ortográfico de 1945 acabou, pois este veio estatuir: «Emprego exclusivo das formas quer e requer na escrita corrente, em vez das formas quere e requere, que, entretanto, serão legítimas, quando se ligarem ao pronome complemento o ou a qualquer das suas flexões: quere-o, quere-a, requere-os, requere-as.») «— Esse é o nome de quando eles me batem; mas, quando me porto bem, sou Tom. Chame-me Tom, quere?» (idem, ibidem, p. 73). E a supressão do h de «húmido» e termos da mesma família: «— Fomos à bomba e molhámos a cabeça. Vê? A minha ainda está úmida» (idem, ibidem, p. 16). «Os olhos umedeceram-se um pouco, pôs as mãos na cabeça de Tom e disse-lhe com simpatia» (idem, ibidem, p. 119).
[Post 4429]
7 comentários:
Apesar de não termos adotado o AO1945 e termos continuado na pseudoetimologia, mantivemos (até o AO1990) o uso do fonético trema (que Portugal desprezou) e continuaremos usando umidade e úmido, fora da etimologia. Uma no cravo e outra na ferradura...
Escrever «umidade» e «úmido» não é escrever assim tão fora da etimologia: já no latim se aponta a variante sem h. E o próprio J. P. Machado no seu dicionário de etimologias consigna que «húmido» vem do latim «(h)umidu-», como já tive ansa de lembrar neste blogue.
— Montexto
«Era suposto ser uma aliança do radicalismo que ficava para além (ou para aquém?) do PC ou, por outras palavras, de trotskistas e de leninistas» - assim escreve no «Público» de hoje, aludindo ao Berloque de Esquerda, Vasco Pulido Valente, ainda assim
uma das penas mais bem aparadas, ou mais propriamente, uma das teclas mais afinadas do português moribundo de hoje.
Três em um, como na Trindade!
- Mont.
1) Cuido que a Convenção (para a unidade, ilustração e defesa do idioma comum) entre Portugal e o Brasil seja de 1943. O Acordo Ortográfico que foi o seu corolário é que é de 45.
2) O Acordo de 45 vigorou formalmente no Brasil até 1955, mas desde 45 que o Brasil já roía a corda.
3) Gonçalves Viana, sempre tão aplaudido como relator da comissão que a I.ª República inventou para reinventar a grafia, não deixava de afirmar: «Conservamos todo o sinal gráfico de fonema histórico [i.e. consoantes etimológicas], hoje nulo, cuja influéncia [sic] na vogal pertencente é persistente: acção, actor, predilecção, redacção, respectivo, trajectória, baptismo, concepção; e aínda quando é facultativa a pronunciação, como em carácter» (parece que o Sócrates, o Malaca e o Brasil proibiram que o cê do carácter e dos caracteres de ser facultativo).
Sintomaticamente Leite de Vasconcellos escusou-se de fazer parte da tal comissão.
4) O Brasil não ficou a vegetar na orthographia antiga; arvorou-se dono da língua e fez uma reforma a seu prazer; entendeu-se com Portugal em 1931 e arranjou uma desculpa em 1936 para se desentender.
5) Orhtographia pseudo-etymologica porquê?
Cumpts.
<< Como me não lembrou, na despedida,/
que era est'alma de vós mísera escrava,/
e em se ela mais partindo, mais ficava,/
para mais do seu mal serdes servida?/
Como pude pensar eu que, partida,/
a serva de servir se libertava,/
se a cadeia, seguindo-a, se alongava,/
e mais pesava, pois que mais comprida?/
Tão postos tenho em vós vontade, e nervos,/
e sonho e coração, e pensamento,/
que o tão grave cuidado de perder-vos/
em mim já não produze movimento;/
e se inda me eu lembrara de esquecer-vos,/
lembrança fora em mim o esquecimento. >>
E lá está um 'produze'; parece Camões?
Parece Camões, sim, pois é um dos sonetos da Camoniana, de Guilherme de Almeida (1890-1969), publicada em 1956.
Mais uma razão para as gramáticas modernas não se esquecerem das formas imperativas «traze, faze, dize», etc., empregadas ainda por Herbert Caro na tradução do Doutor Fausto, de Th. Mann.
Quando alguém ouve mencionar o nome de Gonçalves Viana e dos seus colegas da dita comissão, e não ignora de todo a língua que reformaram, devia pôr-se em sentido ou guardar um minuto de silêncio e preito.
— Mont.
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