«O Podre levantou-se do banco do jardim no momento em que a avó e a Sissi se aproximavam, seguidas pelo pai, a mãe, a Eva e o Luís. Tinham ido todos dar uma volta para se prepararem para a etapa seguinte da viagem» (A Caminho de Santiago, Ana Saldanha. Lisboa: Editorial Caminho, 2010, 2.ª ed., p. 28).
Fala Agostinho de Campos: «Uma das palavras mencionadas na conferência radiofónica de há dias é o inutilíssimo galicismo étape. Este vocábulo aparece-nos por aí, umas vezes escrito ou pronunciado à francesa (étape), outras vezes já semiaportuguesado sob as formas étapa e itapa. Qualquer delas é um mostrengo que lembra fora de todo o propósito o nosso verbo tapar.
Esse termo francês é de origem germânica. Vem da palavra stapel, que no holandês ou no baixo-alemão significava armazém ou depósito e ainda hoje subsiste no alemão corrente e literário com o sentido de estaleiro. Veja-se por isto a quantidade de caminhadas (eles diriam: de itapas) que a palavra andou para chegar à estação actual (isto é, segundo eles, à itapa actual)» («O nacionalismo ainda não nos chegou à Língua», in Língua e Má Língua. Lisboa: Livraria Bertrand, 1944, pp. 55-56).
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18 comentários:
Bem me lembro de ter escrito isso. E cuido que até juntei vasta sinonímia para esconjurar o intruso. Mas já não fui a tempo de evitar que fosse logo filado a dente pelos galiciparlantes contumazes, Rotundos Asnos que soem retouçar sôfregos e embugar-se com delícia na calinada mais fresca em data, até se lhes amalgamar com o coiracho lazarento em tanta maneira, e tão entranhada, que não há aí esforço nem almofaça que lha remova, por musculoso que seja o eguariço, e acabar por constituir mais uma característica da família.
Bem vedes que a culpa não foi nem é minha: de falta de estadulhadas em barda não se podem queixar.
- Montexto (no avatar propínquo pretérito, Agostinho de C., como ficou averiguado).
Nem me ter c'o riso posso!
O primeiro registro de 'etapa', no português, é de 1801, portanto dois séculos de aportuguesamento, o bastante para que esqueçamos sua origem. Ademais, se formos evitar todos os '-ismos', que não os do latim e do grego, ficaremos, como, 'de resto', ficarão todas as línguas românicas e até o inglês, sem poder falar ou escrever; e até mesmo 'calinada' terá que desparecer do vocabulário. Não sou um 'galiciparlante', mas não me preocupo, como não devem se preocupar outros parlantes de outras línguas, em falar ou escrever, sem mesmo perceber ou com isso se preocupar, dezenas de galicismos, hoje tão portugueses quanto 'cama', nossa palavra mais remota, de origem céltica ou pré-céltica. Com todo respeito pelas opiniões do Montexto, vou agora ao dicionário, na condição de Rotundo Asno - onde espero encontrar todas -, conhecer das palavras 'retouçar', 'embugar', 'coiracho', almofaça', 'estadulhada' e 'barda', que não fazem parte do meu modesto vocabulário passivo. Mas, certamente, vou sair enriquecido.
Não tenha dúvida. Muito folgo de ir contribuindo para o enriquecimento do léxico dos leitores e, quando mais não seja, arejar o dicionário.
Mas aí está: é normalíssimo o falante do português conhecer exotismos mais ou menos adoptados, e sobretudo os acabados de importar, e desconhecer palavras velhas e relhas na língua, ainda quando esse leitor porventura possua tal ou qual instrução.
Um tipo ainda há-de acabar por ter de pedir desculpa, sempre que lhe fugir a boca para um termo mais arredado da loquela (ah!) da turba insensata!
- Mont.
Lendo o Montexto, lembro-me da prosa de Tomás de Figueiredo. Será ofensivo?
Para mim, é. Mas relevo-lhe essa por uma vez.
- Mont.
Julgará o Montexto (com alguma razão) que Tomás de Figueiredo era, bem visto, um clássico "de programa"? E levará ele muito a mal que a lembrança vá, também, para o Júlio Dantas da (assombrosa) Pátria Portuguesa?
De Tomás de Figueiredo li umas páginas, cuido que da «Toca do Lobo» e dos «Tiros de Espingarda», que logo fechei espavorido: nunca me baixaria a ideia de o arrolar entre os clássicos. Pelo menos do meu catalecto está bem longe de fazer parte.
De Júlio Dantas (o pim! de Almada foi-lhe fatal, talvez com alguma injustiça, à semelhança do que sucedeu a Castilho com o «bom senso e bom gosto» de Antero...) desse guardo memória mais grata. Se tem a «Pátria Portuguesa» assim por tão assombrosa, talvez ainda lhe dê uma olhada.
Eu esperava que estes meus desabafos lembrassem antes o padre Lagosta e a sua «Besta Esfolada», «Tripa Virada» e sobretudo «Os Burros».
Mas isso já quase me parece da sua parte mais uma maquinação sem bons sentimentos (sim, ainda me lembro do gosto de ler essas crónicas).
- Mont
Caro Montexto,
A culpa não é minha. É você que, muito camilianamente, enriquece a frase de aticismo, louçanias e chiste. Foi até por isso que o supus rico em anos. Fico agora perplexo ao sabê-lo de idade mais manceba, e com esses donaires. Pensava eu que já não se usava. Folgo, creia, por ver-me desenganado.
Prezado Venâncio,
"Assombro" no sentido de "pasmo, terror" ou no sentido de "maravilha, portento"?
«Estou tentado a dizer que se baseia na curvatura do mundo, em virtude da qual na manifestação mais recente volta a mais remota» (Thomas Mann, «Doutor Fausto», 2010, cap. XXXIV, p. 510).
- Mont.
Pátria Portuguesa, de Júlio Dantas, é um portento de classicismo. Já o escrevi (p.ex. na "Ler" de Janeiro): é a nossa última obra clássica, contemporânea da primeira maravilha da nossa prosa moderna, A Engomadeira, de Almada. Não o afirmo para equilibrar as obras, ou os homens... mas por basilar convicção.
É nítido em que tradição se increve o caro Montexto.
«Numa casa quadrada da alcáçova de Coimbra, junto dum lar montado sôbre cachorros de pedra onde estalavam toros de castanho a arder, três figuras bárbaras de homem, debruçadas sôbre uma arca enorme coberta de guadamecins vermelhos, jogavam em silêncio, comendo pedaços de nata com as mãos e movendo os trebelhos doirados sôbre uma velha távola de xadrez.» Assim começa a Pátria Portuguesa. Pode descarregar-se da Internet ou comprar num alfarrabista, barato.
Sim, também já tinha dado entretanto uma olhadela ao «incipit» da «Pátria Portuguesa», disponível em linha. Claro que o homem conhecia a sua língua, e até melhor do que Almada. Conhecer a língua costumava ser condição necessária, mas nunca foi suficiente. Hoje receio que já nem necessária... Talvez o que faltou às obras de Dantas fosse, digamos, a sua «urgência vital»...
Mas eu sempre pus muito alto não tanto «A Engomadeira» como o «Nome de Guerra».
- Mont.
Chamei à Engomadeira «a primeira maravilha da nossa prosa moderna». Nome de Guerrra é um dos topos da nossa ficção. De todos os tempos.
Também acho.
- Mont.
Quanto à pobreza ou empobrecimento vocabular, parece que o fenómeno é geral, e também nisto cá e lá más fadas há:
«- Javier Marías: La palabra estilo desapareció del vocabulario, ni los críticos la usan.
- Umberto Eco: Es la manera de formar, de hacer.
- J. Marías: Y sin duda hay autores que reconocemos. (...) Otro aspecto de los idiomas es cómo están desapareciendo cosas normales y se contruyen mal las frases. Se está reduciendo el vocabulario.
- Umberto Eco: Sí, sí.
- J. Marías: Recuerdo que mi madre, quando yo era adolescente, si me preguntaba o pedía algo, y yo respondía de calquier manera, me decía: "Por favor, no seáis tacaños con la lengua". Hoy la gente es algo tacaña.
- U. Eco: Ocurre también com la
escritura.»
(El País, 22.01.20011)
- Mont.
2011 - óbvio.
- Mont.
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