24.3.11

«Pago/pagado»

Sua Excelência o Gosto

      Tem muita razão no que escreve, caro M. L., mas veja o que já Vasco Botelho de Amaral escreveu sobre o assunto: «Devemos fugir às extravagâncias da expressão, ainda que tenhamos por nós a licença da veneranda Gramática.
      Esta ensina que pagado é um particípio regular com legítimo emprego, principalmente com os verbos ter e haver. No entanto, a linguagem tem os maiores imprevistos. E assim é que se está a assistir à preferência por antigas formas participiais, como pago, tinto, escrito, etc., e ao desprezo das regulares, como pagado, tingido, escrevido, etc.
      Tenho aqui a Lírica, de Camões. Abro-a, à pág. 40 (ed. de 1932), e leio: “Um amor tão mal pagado.”
      Hoje, porém, o nosso gosto o que levaria a dizer seria — um amor tão mal pago.
      É que Sua Excelência o Gosto é muito despótico, e, por isso mesmo, inconstante, contraditório.
      E as línguas obedecem-lhe cegamente, no que ele tem de bom e no que tem de mau.
      Camões gostou do pagado. Mas nós agora não gostamos; preferimos pago.
      Não vai nisso nenhum mal ao Mundo nem à língua» (Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português (Porto: Editorial Domingos Barreira, 1947, p. 292).


[Post 4607]

1 comentário:

Anónimo disse...

Mas aqui o problema é mais fundo.
Já me referi a esta questão em anteriores comentos.
Em breve:

1
Há verbos com particípio duplo: um regular: «pagado, ganhado, gastado, aceitado, entregado»; e outro irregular: «pago, gasto, ganho, aceito (aceite), entregue.» Note-se de caminho que os verbos «empregar» e «encarregar» só têm como particípio «empregado» e «encarregado», e não «encarregue» e «empregue».

2
Nos tempos compostos da voz activa usam-se os part. regulares: «ele tinha pagado, ele tinha ganhado, ele tinha gastado, ele tinha aceitado, ele tinha entregado.» E, claro, porque nem têm outro part.: «ele tinha empregado, ele tinha encarregado.»
Nos tempos da voz passiva usam-se os part. irregulares: «ele foi pago, ele foi ganho, ele foi gasto, ele foi aceito (aceite), ele foi entregue». Mas, claro, porque não têm o part. irregular: «ele foi empregado, ele foi encarregado», e nunca: «ele foi empregue, ele foi encarregue.»

3
Portanto, escrevendo-se «um amor tão mal pago», está-se a seguir a norma estrita, o que precisa explicação é a forma «um amor mal pagado».
Porque só há desvio da norma quando se escreve pagado na passiva: «um amor que foi tão mal pagado»; ou quando se escreve pago na activa: «tinha pago tão mal um amor.»

4
Hoje praticamente não há norma, cada um é o único e a sua... norma (actualizando Stirner); mas no tempo em que a havia, e ainda ma ensinaram, «um amor tão mal pagado» estava tão desviado dela como «tinha pago tão mal um amor», porque onde está «pagado» devia estar «pago» e vice-versa.
Parece que no tempo de Camões a preferência dos regulares (mais compridos) levava a que os usassem até em vez dos irregulares; neste tempo a preferência dos irregulares (mais curtos e «afunilados» - o fechamento da língua ataca de vários lados) leva a que usem estes em vez dos regulares.

5
E a preferência dos irregulares vai a extremos de os forjar a verbos que só têm particípios regulares: caso de «empregar» e «encarregar», que as «más línguas», no sentido do título de Agostinho de Campos, andam para aí a badalar como «ele tinha encarregue a secretária de enviar a carta, a secretária foi encarregue de enviar a carta, ele tinha empregue bem o dinheiro, o dinheiro foi bem empregue», pelas formas correctas «ele tinha encarregado a secretária de enviar a carta, a secretária foi encarregada de enviar a carta, ele tinha empregado bem o dinheiro, o dinheiro foi bem empregado».

6
«Camões gostou do “pagado”. Mas nós agora não gostamos; preferimos «pago». Pelos vistos, nós (é uma força de expressão) agora gostamos de «pago» não só na passiva, segundo a regra, onde Camões gostava de «pagado» (seria interessante saber se e quantas vezes usou «pago» nesse caso), mas até na activa, contra a regra, onde Camões e companhia clássica, barroca e romântica sempre e em todos os casos gostaram e usaram de «pagado», segundo a regra.

7
Que fazer? Cumprir a regra, pelo menos enquanto a soubermos, e «advienne que pourra». E, se for só uma questão de gosto, também não gosto dos irregulares na activa pelos regulares. Não, irregulares e irregularidades, nesta matéria, não são connosco...
— Montexto