Casos de polícia
«O processo foi avocado ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) em 2003, tutelado pelo procurador Vítor Magalhães» («PJ não tem pistas novas para saber onde está Rui Pedro», Rute Coelho e Alfredo Teixeira, Diário de Notícias, 28.02.2011, p. 2).
Creio que, desta vez, nem Francisco Fernandes, no seu Dicionário de Verbos e Regimes (São Paulo: Editora Globo), nos pode valer. A acepção não pede a preposição por neste caso? «O processo foi avocado pelo, etc.»?
[Post 4503]
4 comentários:
Do Dicionário Eletrônico Luft, de regências nominal e verbal:
"AVOCAR
1. TDI: avocá-lo a, para… Chamar; atrair; aliciar: Avocou-os ao seu partido.
2. TDIp: avocá-lo a, para si. Atribuir-se; arrogar-se: "O juiz avocou a si o processo" (Nascentes). "Avoquei a causa a (ou para) mim diretamente" (Jucá). "Avoca a si poderes que não tem" (Aurélio).
3. TD: avocá-lo. Despertar; fazer voltar; evocar."
Já que se está no jurídico e nas regências, deem, p. f., uma mãozinha nesta questão: tanto quanto diz a experiência pessoal, quase toda a gente(advogados, juízes, Ministério Público) diz e escreve: «F. foi constituído como arguido», ou «B. requer que seja constituído como assistente».
Este «como» não está a mais?
Está. Não é preciso para nada, as mais das vezes. Assim como no caso de «considerar», não é preciso acrescentar «como», basta dizer «considero-o pessoa de bem», assim também se pode dizer, e bem, «foi constituído arguido». O caso já mereceu a atenção não sei se de Botelho de Amaral, que cuido que terá dito isto ou coisa que o valha. Todavia, o acrescento está muito generalizado, decerto por influxo franciú, para não variar, mas em alguns casos pode até servir para clarificar a frase. Atente-se por ex. no verbo «alçar» tão utilizado por Fernão Lopes com a construção «foi alçado por rei», assim mesmo, sem medo de cacofonias (não sei se já detectável esta ao tempo). Também podia ter escrito «foi alçado rei». O mesmo para «reputar», que se pode usar sem a preposição «por» ou com ela: reputo-o boa pessoa, reputo-o por boa pessoa.
Tornaremos ao verbo «avocar», lá mais ao diante.
— Montexto
Colhidos os vistos, eu diria em suma que o verbo «avocar» se poderá construir como:
• transitivo directo (ex. 5, «infra»);
• e transitivo directo e indirecto (exs. 1, 2, 3, 4);
• o que significa que em ambos os casos se pode usar tanto na voz activa (exs: 1, 2, 3, 4, 5) como na passiva (ex: texto do jornal em apreço, e o ex. 5 ficaria: «Os feitos e causas dos Juízes, Alcaides, Procuradores, Tabeliães, etc., podem ser avocados pelo corregedor da comarca»);
• e, quando transitivo indirecto, na passiva tanto pode declarar-se o agente (ou seja, quem avoca) e a que ou a quem se avoca, como omitir-se o agente e declarar-se só a que ou a quem se avoca (exemplo desta última hipótese: o texto do jornal, e aproveitando o ex. 2, ficaria: «Muitos portugueses foram avocados ao exército de Raz Selá.»
Vejamos os exemplos da Portuguesa e Brasileira: «AVOCAR, v. t. *Chamar, atrair: [1] «E ele tinha modos de avocar a si todalas naus dos mouros que vinha àquele trato», João de Barros, Décadas, I, p. 101; [2] «Raz Selá… avocou a seu exército muitos portugueses», Baltasar Teles, História da Etiópia, p. 146; [3] «como estas perguntas o avocassem à vida real recobrou ânimo», Camilo, A Viúva do Enforcado, I, 39. *Atribuir, arrogar: [4] avocou a si o direito de legislar. * Fazer (o juiz) que lhe atribuam o julgamento de uma causa pendente de tribunal inferior ou incompetente: [5] «Avocar pode o corregedor da comarca os feitos e causas dos Juízes, Alcaides, Procuradores, Tabeliães, etc.», Ordenação Filipina, I, tít. 58. (Do lat. avocare).
»DIR. Deslocar uma causa de um tribunal para outro, em virtude da competência estabelecida para a apreciação dessa causa. V. Avocação.
»AVOCAÇÃO: s. f. O mesmo que invocação: «convento da Batalha, da avocação da Nossa Senhora da Vitória», Damião de Góis, Crónicas de D. Manuel, I, cap. 45, p. 33. (Do lat. advocatione).
»DIR. Deslocação de uma causa interposta num tribunal para outro. […]»
Concluindo: no texto em apreço, se realmente foi o DCIAP que avocou o processo, na passiva melhor ficaria «por» do que «ao», como observou Helder: «O processo foi avocado pelo DCIAP...» Salvo que se entenda que algum procurador da República fez ao processo, com referência ao DCIAP, o mesmo que Raz Selá fez a muitos portugueses, com referência ao seu exército… E talvez não fizesse mal, convenhamos.
*
Obiter dictum:
Reparastes naquilo da Port. e Bras.: «Deslocação de uma causa interposta num tribunal para outro»? Pois bem, que me conste, uma causa não é interposta nem se interpõe num tribunal. Uma causa propõe-se e é proposta num tribunal. O que se interpõe e é interposto num tribunal são os recursos, — de um tribunal para outro.
— Montexto
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