16.3.11

Tradução

Que descaramento

      «‘What a nerve Mr Eppy has!’ said Dinah» (The Ship of Adventure, Enid Blyton. Macmillan Children’s Books, 2007, p. 257). «— Mas que sensaboria para o Sr. Eppy! — disse Dina» (A Aventura no Barco, Enid Blyton. Tradução de Maria Helena Mendes. Lisboa: Editora Meridiano, Limitada, 1969, p. 224).
      Sensaboria já foi uma palavra muito usada, já. Na tradução acima, é claro (para mim, que li o texto todo) que não devia ter sido empregada. Embora isso não constitua objecção absoluta, a acepção em que foi usada é informal: circunstância ou incidente desagradável, que causa aborrecimentos; contratempo. E se o trecho se refere ao descaramento, ao atrevimento, à impudicícia do Sr. Eppy?
      Seja como for, algo se aproveita como lição: vejam como a tradutora não escreveu «Mr Eppy», como agora se vê, incompreensivelmente, em muitas traduções.

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22 comentários:

Anónimo disse...

Realmente, que topete!
Ele há palavrinhas a que se guarda um respeito supersticioso — e até internacional: haja vista o «madame» que a Bovary parece que nunca ou raro perdeu nas miríades de traduções em que continua à procura do absoluto e só encontra objectos.
— Montexto

Anónimo disse...

A propósito: gostaria de saber quantos são os leitores do Assim Mesmo que pronunciam a palavra «pudico» como pu/dí/cu em vez do pú/di/cu. Como a quase totalidade das pessoas que conheço pronuncia esta palavra como se fosse esdrúxula, gostaria de saber o que é que escolheriam: 1) fazer uma campanha para ensinar as pessoas a pronunciá-la como grave, ou 2) fazer uma campanha para pressionar os dicionaristas a aceitar a forma escrita «púdico».
RS

Anónimo disse...

Mas «circunstância ou incidente desagradável», e até muito mais do que isso, é o que acabo de ler na crónica de Francisco José Viegas, de 15.03.2011, em linha.
Já que temos curado de traduções, vem a talho trasladá-la para aqui. Ei-la:
«Paulo Teixeira Pinto lançou ontem a Babel Brasil, agora com o grupo Ongoing. Festeje-se. A novidade, porém, não é essa (a Leya já está no Brasil), mas a ‘descoberta’ de que há diferenças entre o português de Portugal e o do Brasil, o que levará a Babel a ‘traduzir’ os seus livros: "O léxico é diferente, a sintaxe é diferente, a semântica é diferente, por isso, a tradução será diferente no Brasil.” A menção à ‘tradução’ é uma novidade. Muitos autores portugueses lutaram, durante anos, para que os editores brasileiros não alterassem os seus textos; e os editores portugueses optaram também por não alterar os textos dos brasileiros. A ideia de que há uma língua a separar Portugal e Brasil, e a precisar de tradução, também é uma novidade no contexto das relações culturais. Má.»
É a descoberta mais grave feita por um português depois da do próprio Brasil. «O horror! O horror!», mas agora com mais razão do que nunca.
— Montexto

Anónimo disse...

P.S. — Fazer campanhas? Motivos aí não vos faltam... Agradecei ao «lançador» da Babel Brasil.
— Mont.

Paulo Araujo disse...

Horror, Montexto; não há a menor razão para que não se publique, aí ou aqui, como escreveu o autor. Por admirar bastante o Guerra Junqueiro, fiz um glossário de cerca de 100 palavras que não são habituais para mim, não pertencem ao meu léxico passivo, haja vista a distância mais que secular entre eu e ele. Mas, até o ato de procurar as diferenças lexicais e semânticas foi um aprendizado inestimável. Anteontem completei-o com a mais difícil de encontrar: "um 'breva' de vintém", que descobri ter sido (ou ainda é?) uma marca de charuto, parece-me que de qualidade discutível.

Anónimo disse...

Com efeito. O horror e o terror - terroristas! O que outros construíram, querem estes destruí-lo. Mas cada um faz e deixa a marca que pode...
- Mont.

Venâncio disse...

Calma, calma! Leiam sossegadamente a notícia (que retiro do Sapo e sublinho):

«No Brasil, a Babel planeia lançar títulos de autores consagrados da literatura, mas com edições distintas dos lançamentos em Portugal por causa da diferença entre o português nos dois países.

"O léxico é diferente, a sintaxe é diferente, a semântica é diferente, a língua portuguesa não é uma coisa mecânica, por isso, a tradução será diferente no Brasil", sublinhou.»

Trata-se, nitidamente, da "TRADUÇÃO" de autores consagrados de língua não portuguesa.

Estudei, em tempos, as traduções portuguesa e brasileira dum romance galego (o magnífico O Lápis do Carpinteiro, do Manuel Rivas), isto é, escrito na língua mais próxima da portuguesa à face da Terra, e verifiquei o óbvio: que uma era feita para ser lida por portugueses, a outra por brasileiros.

P.S.
A propósito: Francisco José Viegas, quando escreveu «Longe de Manaus» (um dos mais excelentes romances portugueses nos últimos 50 anos), revezou a norma dos capítulos, escrevendo um em "português" e o seguinte em "brasileiro". Um portento de virtuosismo.

Paulo Araujo disse...

Fez-se a luz! Ainda bem! A prevalecer o primeiro entendimento, Guimarães Rosa e Mia Couto teriam também de ter seus idioletos 'traduzidos' para o 'brasileiro'. E Euclides da Cunha em sua sintaxe e Jorge Amado despido de seus tabuísmos e regionalismos.

Paulo Araujo disse...

A RS:
O Professor Mario Viaro, em seu recente livro, 'Etimologia', explica a ocorrência de 'púdico(a)' pela semelhança ('sístole analógica' a expressão adequada) com a maioria das palavras que têm a sequência sonora 'u...ica', e que são cultismos na língua: pública, lúbrica, música, única.
O mesmo ocorre com 'rubrica', para muitos (pelo menos no Brasil), rúbrica. Essas duas palavras, quando pensadas coloquialmente, têm semelhança com as palavras terminadas em '-aca, -ica, -uca (nhaca, cueca, maloca, maluca etc...), daí a pronúncia errada e, por consequência, a escrita errada. Lembra também a possibilidade de influência do espanhol, 'púdica' e 'rúbrica'. Mas em português é errado pronunciar ou escrever 'púdico' e 'rúbrica', simplesmente porque essas palavras não existem. Faça a campanha nº 1.

Bic Laranja disse...

Cá está!
Não conhecia a palavra «idioleto». Sabeis como a li? Idiolêto...
A primeira vez que me aconteceu foi no tempo da escola primára com o Tio Patinhas, o pato mais rico do Mundo, que faturava, fa-turava, fâ-tu-rá-va que se fartava. E eu nunca tinha ouvisto uma factura sequer.
Cumpts.

Paulo Araujo disse...

Um dos mais bonitos, de Guimarães Rosa, é 'sozinhidão'; à etimologia desta palavra os linguistas chamam também de 'palavra-valise' (parece com mot-valise!)
E ainda há acroletos, basiletos e mesoletos, todos /é/, como também obsoleto, que nunca ouvi pronunciado corretamente.

Anónimo disse...

Sim, cá está a explicação, e também Francisco José a respirar fundo na crónica de hoje, em linha:
«Sobre a minha crónica de há três dias, Paulo Teixeira Pinto esclarece-me, e eu agradeço: o que será diferente (de Portugal) nas edições do grupo Babel no Brasil não é o texto de ‘autores portugueses’, mas o de ‘livros estrangeiros’ que a Babel traduza e publique no Brasil. Faz todo o sentido. A Babel Brasil será, para todos os efeitos, uma editora brasileira — e deve aplicar às suas edições os princípios usados por qualquer uma das suas concorrentes locais. Uma língua é um objeto vivo mas não tem proprietários; pessoalmente, há traduções brasileiras que até funcionam melhor do que traduções portuguesas, pomposas e sem a noção do diálogo e da troca de palavras — talvez com isto se ganhe o suficiente para que a nossa pobre Língua fique mais interessante. Fazia-nos jeito.»

*

Mas, primeiro, o contrário também há-de ser verdade (como soía advertir António Machado), ou seja, que haja traduções portuguesas que «funcionem» melhor que as traduções brasileiras, abandalhadas e sem noção da gramática elementar; a língua portuguesa não precisa de ficar mais interessante: a língua portuguesa é já de si interessantíssima, como qualquer pessoa reconhecerá se a conhecer, e só necessita que os Portugueses, a começar por Francisco José Viegas, se dêem ao trabalho de a estudar, e não julguem que o podem fazer só a ouvir lengalengas mais ou menos dobradas e traduzidas, ou a ler línguas estrangeiras, que para os ditos, na prática, se confundem com o bife e o franciú.
— Montexto

Venâncio disse...

Montexto,

Seja sincero: já alguma vez leu um romance de FJV?

Se sim, diga-nos coisas.

Anónimo disse...

Venâncio, não exageremos em nada, se possível, ou só o estritamente necessário ao estilo.
Há-de-se lembrar daquela do grande Óscar de que não é preciso beber o tonel todo para lhe apreciar o vinho.
De Viegas nunca li nenhum romance; ultimamente leio cada vez menos romances (depois dos russos da grande época quase não há pachorra para romances, salvo para uns poucos muito afins — «the happy few»). De Viegas vou lendo as crónicas, e, se foi ele o autor, como me dizem (e deve ser: a opinião a propósito a Gouvarinho no recente Um Promontório em Moledo é, ou é também, de Viegas), do reaccionário minhoto, então li-lhe também este quase todo. E, já aqui o assentei, considero Os Males da Existência um dos livros mais bem escritos dos últimos tempos, se não o mais bem escrito.
Não é pouco, mas ainda é melhorável. Mais uma vez, a língua requer estudo constante, e os tempos não correm favoráveis à perfeição na escrita. Mas isto são conversas demoradas...
— Mont.

Bic Laranja disse...

@ Paulo Araújo
Grato pelos exemplos que, facilmente adivinha, apresentados assim rapidamente os pronuncio (eu e qualquer português, salvo raras e honrosas excepções) com /ê/. O obsolêto é doutra estirpe, ou não?

@ Montexto
É sempre o outro. Tudo pela medida do outro. A língua não tem proprietários, mas a "nossa (um possessivo?!) pobre Língua" (a maiúscula deve-se ao outro, porque a nossa é pobre e nem chega certamente a tanto) pode reger-se pela cartilha do outro, mas não tem dono. E como cão sem dono pode seguir sem açaimo e roer a gramática toda. No fim qualquer crioulo será português; o português, esse, seja galego se puder.
Cumpts.

Anónimo disse...

«a propósito da Gouvarinho», leia-se, s.f.f.
*
Sim, Bic, esse é um dos velhos males da existência — nossa.
— Mont.

Venâncio disse...

Sim, Montexto, esse Promontório é do Viegas. Tá a ver que o moço até lhe dá um jeito?

Eu só lhe falei nisso depois de ler esta sua tirada (pardon my French, nunca mejor dicho): «...que os Portugueses, a começar por Francisco José Viegas, se dêem ao trabalho de a estudar [a língua portuguesa], e não julguem que o podem fazer só a ouvir lengalengas mais ou menos dobradas e traduzidas».

Paulo Araujo disse...

Sem dúvida, Bic, obsoleto é de outra estirpe (gostei desta acepção). O que eu quis mostrar foi a pronúncia, são todas /é/, como também dialeto. No Brasil, pelo menos, se pedirmos a um milhão de pessoas para dizerem 'obsoleto' vão dizê-lo com /ê/. Ia me esquecendo, faltaram leto² e isoleto (ver Aurélio), estes e mais aqueles três, típicos neologismos dos linguistas, que não cessam de criar coisas novas, muitas desnecessárias.

Anónimo disse...

Não devia ser «a começar por Francisco José Viegas», por exagerado; bastava: «incluindo Francisco José Viegas».
— Montexto

Paulo Araujo disse...

Prezado Montexto, concordo com você que, infelizmente, temos aqui alguma literatura, vernácula ou traduzida, 'sem [respeitar a] noção de gramática elementar'; mas devo estranhar a deselegância verbal que 'abandalhou' sua habitual louçania, tão garridamente lusitana – ainda que ilustrada, às vezes, com belas frases da língua dos galicismos que tanto abomina – .
Nossa língua é tão rica em polissemia que 'abandalhado' pode ser apenas 'desvalorizado', termo relativamente suave – e que expressa a acepção que usei para o verbo acima – , mas também pode ser 'acanalhado', algo próprio de canalhas, aqui a acepção mais comum e a que primeiro o ouvido percebe. Não foi nesta acepção que você usou-o, tenho plena convicção, mas se o foi não há porque macular sua indiscutível erudição, você não precisa disso; e se você apenas repetiu um termo usado por Antonio Machado, desconsidere, por favor, este meu comentário.
E por isso continuamos na mesma lide (Diex le volt), em prol de um propósito comum.

Anónimo disse...

Sim, Paulo, «abandalhada», no sentido de «que denota falta de brio», relaxada, cf. Dic. Acad. Ciênc. Lx, 2001, e não mais, como bem percebeu. Quanto à «língua dos galicismos que tanto abomino», aproveito só para esclarecer (mas cuido que já nem seria necessário) que o que eu abomino não são tanto os galicismos (e qualquer outro barbarismo) como os galicismos escusados, e não a língua deles. A essa devo-lhe muito, nem sei como alguém a possa abominar.
— Montexto

Paulo Araujo disse...

Posso ter usado de sintaxe desajeitada, mas meu 'que tanto abomina' referiu-se aos galicismos, não à língua francesa, pois esta, eu sei, é do seu domínio e apreço; muito justos por sinal, pois também privo da mesma opinião.
P.S. Por isso, não há vírgula entre 'galicismos' e 'que'.