É partícula de realce
A propósito das expressões à última hora e à própria hora, escreveu Vasco Botelho de Amaral no Glossário Crítico de Dificuldades do Idioma Português (Porto: Editorial Domingos Barreira, 1947, p. 236): «Não resta dúvida que estas formas (sem da) são mais correctas, porém menos correntes. Inclusivamente os que prezam a gramática deixam fugir a dição preposicionada.» Terminava, contudo, afirmando que «quanto à sua correcção ou incorrecção, não se aflijam os gramáticos, não se impacientem os curiosos, nem se precipitem os indisciplinados: — o uso é soberano senhor que vai fazendo e desfazendo leis».
[Post 4584]
8 comentários:
Da base de dados de DAVIES/FERREIRA:
«Em 1992, o Presidente Ieltsin cancelou à última da hora a sua visita prevista, ao que tudo indica, devido à mesma questão.» [imprensa portuguesa]
«O ex-atleta do Tirsense foi chamado à última da hora para ocupar o lugar de Noga, que foi vítima de uma súbita gripe.» [imprensa portuguesa]
«Recorde-se que a iniciativa estava prevista funcionar numa tenda gigante que, à última da hora, não chegou a Trancoso.» [imprensa portuguesa]
«Deixámos os cães presos a umas pedras avantajadas e fomos alindar a arena do Ti Coelho. À última da hora, o João Pretinho não veio» [Vasco Pereira da Costa, A Qunta do Salomão]
Posso testemunhar (ah, a velhice) que «à última da hora» vigora desde há bem meio século, e é de supor que de há mais tempo, talvez muito mais.
«À última hora» seria a versão não marcada, enquanto «à ultima da hora» contém uma reserva, uma censura.
Desculpem mais uma.
Escreve Vasco Botelho de Amaral: «Não resta dúvida que estas formas...». A minha costela purista põe-se a ranger. Esperaria ler «Não resta dúvida DE que estas formas...»
Mas aí está. «O uso é soberano senhor que vai fazendo e desfazendo leis». E eu amocho. Com algum alívio. Porque o purismo é uma cruz.
Primeiro: vejo que a memória me não falhou ao imputar a referência do modismo a Botelho de Amaral. Mas, se ele não explica como se chegou ao acrescento de «da», então ainda haverá outro autor que tocou esse assunto, porque me lembro dessa explicação.
Segundo: «à última da hora» é mais expressivo no sentido de significar o extremo limite do tempo ou prazo em que uma coisa aconteceu, não só na última hora, mas na última parte da hora, quase apetece dizer quando a hora está nas últimas, quando a hora está a dar as últimas, quando deram as últimas badaladas da hora, quando deu a última badalada da hora, quando deu a última da hora, à última da hora, portanto quando a coisa estava já a pique de não acontecer ou de não poder acontecer; o bom povo, que gosta de encarecer, sente esta expressividade do giro, que lhe caiu no goto, e, bebendo os ventos por ele, não vejo que mereça censura, antes aplauso.
Terceiro: é prática das mais crebras nos clássicos a supressão da partícula «de» em casos como «não haver dúvida de que, não haver dúvida que», e outros do género. Já toquei isto quase até à exaustão citando e indicando exemplos de Mário Barreto e outros, em anterior comento de mês pretérito, talvez Dezembro ou Janeiro. Não vale a pena tornar ao assunto. Procure-se, e encontrar-se-á. Esta questão, a bem dizer, não entende com o purismo: é um facto da língua, facilmente explicável pelo influxo do menor esforço na articulação somente do «que», mais forte do que o «de», que quase passa despercebido.
Enfim: o purismo é a higiene da língua, e a nossa cruz é o que nos enaltece. Que seria Cristo sem a Cruz?
— Montexto
Caro Montexto,
Botelho de Amaral explica, de facto, como julga ter-se chegado à intercalação da preposição, mas a explicação é longa, pelo que citei apenas a conclusão.
Mas coincide ou não com o de que me parece lembrar-me, Helder?
— Montexto
Sim, coincide.
Obrigado. É que eu também tenho esse livro do bom Vasco, mas não comigo.
— Mont.
Enviar um comentário