27.3.11

Uso das aspas

Coma irreversível

      Vasco Pulido Valente será, como afirma Montexto, uma das penas mais bem aparadas do português moribundo de hoje, mas tem algumas manias difíceis de tolerar. Uma delas, e, a meu ver, a pior, é o uso inconsiderado de aspas. No fundo, é como se estivesse a dizer ao leitor que nenhuma daquelas são expressões que ele use. Muito estranho. Um exemplo da sua crónica de hoje, porém, vem demonstrar outro erro já aqui denunciado por mim em relação a outros autores: o uso de comas em sentidos secundários de certos vocábulos. Ei-lo: «O dinheiro não sobrava. Desde a escola que usei fatos virados do meu pai (que ficavam com as “casas”, cerzidas, do lado errado). Os sapatos só se mudavam depois de muitas meias solas. Como, antes do nylon, as camisas, depois de muitos colarinhos de substituição e de uma dezena de punhos novos» («Velhas contas», Vasco Pulido Valente, Público, 27.03.2011, p. 36).
      Para que são as aspas em «casas»? Imagino que, se tivesse usado o termo «botoeira», dispensaria as aspas... Ridículo. Que alguém lhe diga, por favor, conduzindo assim o homem à sua maior grandeza.

[Post 4619]

9 comentários:

Venâncio disse...

Tem razão, Helder. No resto, as (de facto, muitas) aspas de VPV são de desafecto. Caso paradigmático: a "Europa".

Mas VPV compensa essa abundância, ditada pelo íntimo, com a ausência de dois sinais de que deuses menores abusam na nossa literatura e imprensa. Nunca escreveu um ponto de exclamação, nunca escreveu umas reticências. O que houver para exclamar, ele exclama-o por extenso. O que houver para sugerir, ele sugere-o por mais refinados meios. É um dos meus heróis.

Venâncio disse...

P.S.

Exactamente porque não há reticências, as insinuações de VPV são assassinas.

Anónimo disse...

Essa da «Europa» também a ia referir: ironia, desdém, descrédito, cepticismo...
Mas os sinais de pontuação são para serem usados no seu devido lugar, e não vejo motivo para nunca usar reticências ou o que quer que seja. Os plumitivos da última hora pecam mais pela falta desse uso do que pelo contrário. «Inventaram a falta de pontuação», caçoava Borges. Os modernos é que inventaram estas manias bagatelares em cata da originalidade à fina força. Como em geral nada os distingue intrinsecamente, assinalam-se no perfunctório. Um só usa reticências, outro quase só pontos finais, outro proscreve o travessão, outro as maiúsculas, outro os parágrafos, etc., etc. E explicam a coisa com mil teses cerebrinas. Sim, porque os moderníssimos são férteis em teorias.
Patético!
— Montexto

Anónimo disse...

"Que alguém lhe diga..." não seria um exemplo desse francesismo sintático de que andávamos a falar recentemente?

Venâncio disse...

Montexto,

Conhece alguém que escreva, esteja vivo, e de que você goste?


P.S.
Pergunto isto porque escrevi, por meus pecados, uma tese sobre os gostos e os desgostos literários no Portugal de há 150 anos. E, lendo-o a si aqui, parece que me faltou material.

Anónimo disse...

Sigo o conselho do velho Borges: em geral só leio livros com mais de cem anos.
Dos mais recentes, além do caro Venâncio, claro, o último que mereceu o meu inconspícuo beneplácito suicidou-se em 1994. Mas está mais vivo do que antes.
— Montexto

Venâncio disse...

Isso é muito pouco, caro Montaigne, é quase nada. Você precisa urgentemente de actualizar-se.

Eu dou-lhe um empurrãozinho. Leia na Net (tá a ver?) o melhor prosador entre os nossos jornalistas mais jovens, Paulo Moura (neste momento em Bengazi, o louco), na página «Repórter à solta».

Se tiver muito pouco tempo, limite-se a uma só crónica. Procure, por exemplo, "Afonso Henriques na minha sala de estar". O tio Google leva-o lá.

Anónimo disse...

Caro Venâncio, já se sabe que vou conversando os meus clássicos, e dou de barato que desse convívio algo se me possa ter pegado (oxalá!), mas confundirem-me com Montaigne, «um dos meus heróis», é demasiada honra para qualquer mortal, quanto mais para mim, cá muito no coice processional dos seus admiradores e discípulos!
— Montexto

Venâncio disse...

Caro Montexto,

O mundo estaria muito mal feito (mais mal feito ainda) se você não admirasse Montaigne. Os meus queridos japões não o dirão, mas alguma coisa sub sole bate certo.