10.4.11

«Considerar como»

E em Camilo?

      «A humanidade, que toma cada dia consciência da unidade dos valores humanos, considera-os como um património comum e, face às gerações futuras, reconhece-se solidariamente responsável pela sua salvaguarda.» É um excerto da Carta Internacional sobre a Conservação e o Restauro dos Monumentos e dos Sítios, de 1964.
      Intuitivamente, omitiria a partícula «como». Consultemos, agora que está tão à mão, a Sintaxe Histórica Portuguesa, de Epifânio Augusto da Silva Dias. (Actualizarei sempre a ortografia.) «Imitando a sintaxe francesa, o português moderno constrói frequentemente o verbo considerar com a partícula como:
      o numeroso clero das paróquias vizinhas considerava-o como o mais venerável entre os seus irmãos no sacerdócio (Herc. Eurico, 18)» (p. 38). 
      Estará legitimado e explicado, mas pergunto-me se Camilo também usou a partícula nesta construção.

[Post 4674]

6 comentários:

Anónimo disse...

Deve ter usado uma que outra vez, em que «como» pode até tornar o enunciado mais claro.
Pode-se dizer desta construção o mesmo que Epifânio também disse da locução «o facto de», obrigatória em francês, de onde nos veio, mas que em certos casos pode clarificar ou «tornar menos duras» certas frases.
Lede o § 363 da Sintaxe, aqui ao lado (já não é preciso trasladar).
E já agora a propósito de uma locução de destino singular por ter começado a ser empregada no português arcaico, depois esquecida, depois usada de novo ao influxo de construção semelhante do francês, e por isso tachada de galicismo por alguns (não por mim, que a considero ressuscitada, posto que ao bafo do francês). É a locução «a menos que». Lede o § 382.
Em suma: usem-se, mas sem abuso.
— Montexto

Anónimo disse...

Por exemplo, esta frase de Camilo («A Senhora Rattazzi», Frenesi, Lisboa, 2001, novíssima edição correcta (conforme a 4.ª edição, in Boémia do Espírito, 1886, última revista pelo autor), p. 12): «Se um período sério não destoasse desta brincadeira, eu lembraria aos meus conterrâneos que o repelirem patrioticamente as zombarias dos insultadores estrangeiros lhes é mais airoso do que esse palavreado de rimas bombásticas e fofas com que expurgam em golfadas anuais o seu patriotismo bilioso no Primeiro de Dezembro.»
Esta frase agora poucos a escreveriam sem lhe enxertarem — desnecessariamente — um «o facto de», ficando: «... o facto de repelirem patrioticamente as zombarias...», etc.
«O facto de..., pelo facto de...»: giros que se lêem e ouvem a torto e a direito, as mais das vezes sem nenhuma necessidade, bastando pura e simplesmente suprimi-los para a frase se aprumar.
— Mont.

Anónimo disse...

Lembrais-vos da expressão «por via de regra», empregada por mim em anterior comento, e com que pelo visto embirraram Nélson Rodrigues e Millôr Fernandes? Percorrendo a dita «A Senhora Rattazzi» (o livro, nanja a dona, entenda-se) à cata de algum camiliano «considerar como», depara-se-me na página 11 a expressão tal qual a empreguei: «Mulher escritora, por via de regra pouco exceptuada, é um homem por dentro. … Dom Francisco Manuel de Melo tinha razão: — Mulheres doutoras, autoras e compositoras dava-as ao Diabo. É triste coisa — prossegue o moralista do «Hospital das Letras» — que estejais com vossa mulher na cama, na mesa, ou na casa, e andem lá pelas tendas mil barbados perguntando por ela.
Não há feminilidades que se respeitem desde que a mulher se masculiniza, e, como escritora virago, salta as fronteiras do decoro, sofraldando as espumas das rendas até à altura da liga azul-ferrete.
Mau! Começo a ser muito sério e metafórico. Por aqui me fecho.»
*
(Estava eu a arrolar as barbaridades de linguagem dos tais críticos de «por via de regra», contra as quais mais bem empregados seriam os seus remoques, mas cai-me da mão o lápis censorino: é que estes, juntamente com Machado de Assis e Graciliano Ramos, são os escritores brasileiros que mais leio e admiro, e compensam qualquer descuido com infinitos acertos e graças; não me caberá a mim pôr-lhes a careca ao léu, tanto mais que cincaram menos que quaisquer outros. Sejamos aristarcos, sim, não zoilos.)
— Mont.

Helder Guégués disse...

Lembram-se do vocábulo «feitoria»?
Leiam isto, na parte referente à história do nome da empresa.

Anónimo disse...

Sim, belas imagens. Mas, se bem vi, não me pareceu que o surgimento do nome ficasse dilucidado.
Do que eu gosto é da palavra «terroir» aplicada ao torrão dos vinhedos! Infalível em qualquer poeta da vitivinicultura que se preze...
(Oh parolos e pategos irremediáveis!)
— Montexto

Paulo Araujo disse...

No Dicionário Luft:
"3. TD: considerá-lo; considerar que… TD(I) Pred: considerá-lo (como) + Predicativo. TDp(I) Pred: considerar-se (como) + Predicativo. Imaginar(-se) ou supor(-se); achar(-se) ou crer(-se); julgar(-se): Considero que não há nada a fazer. Ele considera a questão encerrada. ( <… considera/a questão estar encerrada = … considera que a questão está encerrada). Considerar um caso (como) perdido, alguém (como) intruso. "Consideram a Deus como pai" (Bernardes: Aulete). "Todos o consideravam como um aventureiro" (Rocha Lima). Ele se considera poeta (< Ele considera/ele ser poeta). "Considera-se grande jornalista" (Lello). "… considerava-me como ligado à missão de sangue que meu pai me incumbira na hora da morte" (Herculano: Freire).