Com ou sem artiguinho?
Original: «Everyone gets in position...» Tradução: «Todos tomaram as posições...» Lembrei-me logo de um comentário verrinoso de Camilo a uma obra em que lera que alguém «cortara as relações» com certo indivíduo. Como quem «corta as unhas», zombou Camilo. Ora leiam o que mestre Aquilino escreveu precisamente na obra O Romance de Camilo: «Quando hospedada em casa do negociante Agostinho Francisco Velho, Rua de D. Maria II, Ana Plácido era visitada por uma criatura, que se dizia prima dela e chamar-se Cândida. Viria ela convencer a pecadora a cortar as relações com o romancista, a título de que ainda era tempo de arrepiar caminho, perdoando Pinheiro à transviada» (O Romance de Camilo, 1, Aquilino Ribeiro. Lisboa: Gleba, 1957, p. 322).
Tomar posição: «Desceram de rondão as escadas, e no atrio para onde davam as portas ameaçadas, tomaram posição e ordenança de guerra» (O Arco de Sant’Ana, II, Almeida Garrett. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859, p. 232).
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9 comentários:
É como Camilo e, antes dele, Garrett e todos os escritores de primeira plana escreveram. Parecendo que não, Mestre Aquilino já começa a padecer de... modernices.
Lembremos uma das regras de oiro da língua portuguesa segundo António Feliciano de Castilho, esse «cego luminoso», como lhe chamou Camilo: calar, quanto possível, pronomes e artigos.
Vejo que anda a ler ou a reler o Arco. Eu ainda não terminei, tantos e tamanhos os casos e singularidades de linguagem que nele abundam, dignos de nota e anotação.
— Montexto
Não sou Professor (sempre uso a maiúscula para esta palavra) nem tenho competência para tal, mas se tivesse que opinar para alguém que perguntasse sobre a necessidade do artigo, nessa frase, diria que, se é um artigo definido, portanto, um definidor, o objeto definido (o 'certo indivíduo') já está identificado, prescindindo-se do artigo. Quanto às unhas (com muita argúcia) do Sr. Camilo, óbvio, cabe o artigo, pois podem ser as de 'qualquer' indivíduo, a ser definido.
Acabo de ouvir no noticiário da TVI 24, 21 h 20 min, um desses inumeráveis machuchos, que ultimamente saíram de todos os cantos afirmando que sabem perfeitamente como salvar a pátria, a dizer que quer maior aderência da população a não sei que projecto.
Imagine-se agora que o homem atinará tanto com as políticas como acerta na língua. Rezemos.
— Montexto
Sobre adesão/aderência, vejam aqui.
Ora aí está.
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Mas o confusionismo não se queda pelos jornalistas e políticos. Dilatou-se até a textos reputados antológicos pelo Ciberdúvidas: «“Inócuo” era um benefício social. Não havia que emendar-se a vida pelo dicionário. Havia que forçar-se o dicionário a meter a vida na pele» («A Palavra Mágica», conto de Vergílio Ferreira, na antologia do dito). Como diria sem falta Cândido de Figueiredo também aqui, «não é da nossa língua».
— Montexto
A propósito do «havia que» da citação de Montexto, numa coluna que o Diário de Notícias tinha sobre questões da língua, há aqui uns anos (vem-me à memória José Pedro Machado como seu autor, mas devo estar em erro), dizia-se que era construção tirada do castelhano e que em bom português se deveria dizer «havia a...».
Haverá por aí alguém com paciência para abordar o tema, se não agora, quando for oportuno?
COM PONTINHO OU SEM ELE
«Uma de purismo linguístico: como dizia CP Snow sobre a televisão, nada de bom pode sair de palavras que são meio latinas e meio gregas» (Rui Tavares, Público, 20.IV.2011).
E eu, naquele engano de alma ledo e cego, a escrever e a cuidar que se devia escrever C.P. Snow, D.H. Lawrence, T.E. Lawrence, E.M. Forster, E.M. Cioran, Rúben A., J.D. Salinger, M.S. Lourenço, Jerome P. Jerome, Gonçalo M. Tavares, etc. Ou será para dar o exemplo da poupança (de tinta) em tempos de crise.
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• Quanto a «haver que», no sentido de necessidade ou dever (há que lutar, há que pedir perdão, não havia que emendar(-se) a vida pelo dicionário, havia que forçar(-se) o dicionário a meter a vida na pele), é castelhano; em português: é preciso, é necessário, é mister, é força, é forçoso, faz-se mister, há mister, deve-se, cumpre, releva, importa, etc.
• Quanto a «haver a» (há muito a fazer, há muito a dizer, etc.), é francês.
• Português é empregar «haver» a exprimir quantidade ou conjunto de coisas, expressas ou subentendidas, mas nesse caso com «que» ou «para»: há muitos livros que ler (ou para ler), há muito que ler (ou para ler), há muito que ler, não há nada que ler (ou para ler), não há que ler (subentendido «nada», «nenhuma coisa», «coisa alguma» ou até «alguma coisa»; e não no sentido de «não se deve ler» ou «não é preciso ler»).
É a basezinha, de todo o ponto ignota dos novíssimos, a língua lhes perdoe.
Mas «haver» em português é muito prestadio e tem muitas serventias. Basta abrir a infalível Portuguesa e Brasileira.
Advirta-se só neste giro: «sem língua, e boa língua, não há entrar no Olimpo», em que «haver», na negativa, significa «não se poder»: «sem língua, e boa língua, não se pode entrar no Olimpo».
Agora há quem diga, e parece, que se pode, mas são Olimpos muito provisórios e efémeros, bafejados pelo preconceito comercial de que o último em data é que é.
O tempo, «esse grande escultor» — e aristarco, — lá fará as suas contas.
— Montexto
P.S. — «...la vulgarité de leur public sans choix, puis l’immortel mépris ou l’immortel oubli qui va suivre» (André Gide, «In memoriam. Stéphane Mallarmé», L’Ermitage, Out. de 1898).
— Mont.
«Durante umas horas — na realidade foram apenas minutos, mas dos de muita demora — ouvi a sua biografia, o nome dos seus conhecidos, títulos de poemas e romances, os cargos que desempenham alguns dos seus conhecidos, o nome das figuras políticas que admira. Repetiu, sublinhando, a urgência de abancarmos um destes dias para discutirmos a fundo as suas ideias e analisarmos até que ponto elas e as minhas são convergentes. Respondi-lhe que estava a chegar de viagem, tossi a confirmar a minha constipação, disse-lhe, o que era facto, que as minhas filhas tinham pouco antes chegado da Holanda e ainda mal lhes falara, repeti o ataque de tosse. Encarou-me, atónito de que eu não compreendesse a urgência e a seriedade do seu intento. Rabiscou um número de telemóvel e prometeu que volta, despedindo-se com um “Temos muito que conversar!”» (blogue «Tempo Contado», de J. Rentes de Carvalho, 21.04.2011).
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N.B. — É assim mesmo: «Temos muito QUE conversar», e não «temos muito a conversar».
— Mont.
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