É vezo entre nós
«Talvez por esses seguidores não terem as qualidades do poeta original, ou talvez porque a poesia de Luis de Góngora fosse de difícil acesso e decifração para o comum dos mortais, a verdade é que do nome do poeta viria a nascer a expressão pejorativa “ser gongórico” como sinónimo de alguém que usa uma linguagem demasiado rebuscada, ridícula porque excessiva nos floreados» (Mafalda Lopes da Costa, Lugares Comuns, Antena 1, 14.04.2011).
Primeiro e principal: desde quando é que existe a expressão «ser gongórico»? Valha-nos Deus. É quase cada sacholada, sua minhoca... Segundo: não é em todos os dicionários que o falante colhe que é vocábulo pejorativo. É ou pode ser. Do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora não se retira esse sentido. Mas sabemos que sim, é verdade. Ou, repito, pode ser. No Dicionário Brasileiro de Insultos, de Altair J. Aranha (Rio de Janeiro: Ateliê Editorial, 2002, p. 170), lê-se isto: «Dizer que alguém é gongórico indica que ele fala muito e diz pouco, que tem mais enfeite do que conteúdo.» De determinada escrita, afirmou Afrânio Coutinho: «Ela não é má porque é gongórica, como é vezo entre nós julgá-la, mas porque é de mau gongorismo» (Do Barroco. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994, p. 175).
Não sei se se interessam por estas miuçalhas da língua, mas algo surpreendente é que logo em 1624 se tenha cunhado no castelhano o termo culterano (registada nos nossos dicionários mas não explicada) para classificar o estilo gongórico, que é um trocadilho com «luterano». Foi nesta altura que Quevedo e outros escreveram que a poesia de Góngora só era clara quando era queimada, em alusão à heresia poética deste e, possivelmente, e de forma ínvia, ao facto de Góngora ser judeu. Vejo que a Enciclopédia Portuguesa e Brasileira acolhe o verbo agongorar: «Tornar semelhante ao estilo gongórico: para chamar a atenção do público, resolveu agongorar a prosa.»
[Post 4693]
10 comentários:
O adjetivo 'agongorado', no Houaiss, enfatiza a definição hiperbólica:
"adj. (1645 cf. SalTe) diz-se de estilo assemelhado ao de Gôngora; com arrebiques exagerados; tendendo ao obscuro, rebuscado e artificioso; um tanto incompreensível, enigmático ¤ ETIM part. de agongorar; f.hist. 1645 agongorada ¤ sin/var gongórico"
Eu bem lhe digo que esta senhora merece um blogue só para ela!
Também a 8.ª do da Porto Ed. e o Aulete Dig. trazem agongorar, gongorizar e culteranismo ou cultismo, e conceptismo. Mas realmente não explicam essa ligação de culterano a luterano. O nosso padre Vieira filiava-se mais na corrente conceptista do Barroco do que na culterana ou cultista ou gongórica. Sobre isto António Sérgio deixou um ensaio esclarecedor.
Sobre o cultismo lê-se cuido que no Aulete: «extremo rigor no emprego das palavras»; ou seja, balda, se o é, de que por felicidade hoje toda a pena ou tecla se eximiu.
Mas já agora aproveite-se para referir as duas antologias da poesia de Góngora e Lope de Vega, dois opostos do Séc. de Ouro, acabadinhas de sair pela pena de José Bento na Assírio & Alvim.
— Montexto
«...Quevedo e outros escreveram que a poesia de Góngora só era clara quando era queimada...»: esta faz-me lembrar a de Guerra Junqueiro: «a Universidade de Coimbra só dá luz chegando-se-lhe fogo» (algures nas Memórias de Raul Brandão, em que se fala bastante do bardo de Freixo de Espada à Cinta — dica a Paulo Araújo).
— Mont.
«Eu bem lhe digo que esta senhora merece um blogue só para ela!»
A mim ensinaram-me, e aprendi, que se dizia ou devia dizer:
• Eu bem lhe digo que eu mereço um blogue só para mim
• Eu bem lhe digo que tu mereces um blogue só para ti
• Eu bem lhe digo que ela (ou ele ou esta senhora ou este senhor) merece um blogue só para si
• Eu bem lhe digo que nós merecemos um blogue só para nós
• Eu bem lhe digo que vós mereceis um blogue só para vós
• Eu bem lhe digo que eles (ou elas ou estes senhores ou estas senhoras) merecem um blogue só para si
Mas claro que isto era quando se ensinavam e seguiam as regras da gramática. A inefável modernidade já deve ter feito e introduzido das suas aqui...
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Já que indiquei à curiosidade dos leitores duas edições recentes de dois grandes do Grande Século, acrescente-se uma também recente do maior de todos: Novelas Exemplares, de Cervantes, agora na Ulisseia e pela pena de Helder Guégués.
Para uma suma muito sumária do «Siglo de Oro», só faltava inculcar alguma coisa de Quevedo e Calderón, mas destes ultimamente não me consta que saísse nada. Alguém ponha em português a «Vida de Marco Bruto», apogeu do barroco conceptista e tão gabada de Borges.
— Mont.
Nem de propósito: a TV 2 está a passar um programa sobre as guerras entre Bruto (e Cássio) e Marco António (e Octávio). Mas Bruto chama-se Brutus. — Ah, grandes brutos!
— Montexto
Tivéssemos um Guerra Junqueiro hoje em Pindorama e os políticos não seriam o que são.
Ó Montexto,
[estou de regresso da pátria, onde sempre me calo, por escassez pessoal de apetrechos...]
«Esta senhora merece um blogue só para ela!» é excelente português. Que pena que (cito o seu habitual passa-culpas) o tenham "ensinado" tão afuniladamente!
Os idiomas têm sempre alguma folga, que é uma das demonstrações da inteligência humana. Mas os "mestres" puxam bem a arreata, ah poinão! É o que os sustenta.
Et tu, Brute! Estamos bem aviados, estamos. Eu também sempre fiz isto por puro exercício, mas perdida toda a esperança — nec spe nec metu.
— Mont.
«Eu bem lhe digo que Fulano às vezes se ri de si.»
Adivinhem agora de quem se ri Fulano:
se é de si próprio, se do (putativo) destinatário desta frase, se de uma terceira pessoa (outra que não o Fulano).
É a chatice da segunda pessoa formal em português, que não foi conjugada:
Eu bem lhe digo que você (V. Ex.ª, V.S., V.M.) merece um blogue só para si;
Eu bem lhe digo que vocês (etc.) merecem um blogue só para si.
É verdade que esta segunda pessoa não é normalmente conjugada em gramáticas e afins; mas nem só do conteúdo das gramáticas (e dicionários, já agora) vive a língua. Há vida para além dos compêndios.
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