14.4.10

Crase, de novo

Poucos, mas alguns


      A respeito da crase, escrevi que há algumas subtilezas no seu uso, mas que me parecia que, de uma maneira geral, não escapavam ao comum falante português. Ora cá está mais um caso que não é sempre resolvido da mesma maneira: «Estava a representar o filho da mulher-a-dias que vai à casa dos patrões fazer um recado» (Expiação, Ian McEwan. Tradução de Maria do Carmo Figueira e revisão de Ana Isabel Silveira. Lisboa: Gradiva, 5.ª ed., 2008, p. 39). Estou convencido de que muito mais de metade dos falantes, e especialmente tradutores, optariam por não fazer crase.

[Post 3341]

5 comentários:

Paulo Araujo disse...

Vejo duas condições: se se refere a uma determinada casa de determinados patrões, consideraria crase; se a afirmativa é vaga com qual casa de quais patrões, não vejo razão para considerar a existência de crase. A crase sempre existirá onde tiver de existir, mas o acento grave é o busílis. Uma boa reforma ortográfica acabaria com ele e ninguém iria sentir falta.

Franco e Silva disse...

Estilisticamente também, numa primeira vista, escreveria ... A CASA. Mas observando melhor, substituindo CASA por PALÁCIO, já escreveria ... AO PALÁCIO. Logo, não será mais correcto escrever ... À CASA (com crase)? Do mesmo modo VOLTA AO EGIPTO e, assim, VOLTA À FRANÇA, com crase.

Napoleão Mendes de Almeida, no seu DICIONÁRIO DE QUESTÕES VERNÁCULAS, de 1911, Editora "Caminho Suave" Limitada, já desenvolve (pág. 69) esta paixão brasileira sobre o tema da CRASE, com uma série de regras.
Neste caso (regra 5.ª), em que CASA é especificada como DOS PATRÕES, aconselha a crase, ao contrário de CASA quando utilizada como «residência, lar ou domicílio», sem qualquer especificação (por exemplo, «"Eu vou a casa."»).
Mas vejamos as consequências do uso da sua regra 1.ª: embora «"Ele foi ferido A BALA"», «foi ferido A CACETE"», porque se não diz «"Foi ferido [*]AO CACETE."», não se deve grafar «"Escrever uma carta [*]À MÁQUINA, [*]À MÂO, [*]À TINTA, porque não se diz «"Escrever uma carta [*]AO LÁPIS"». Também não é «"pagamento [*]À VISTA, mas "pagamento A VISTA"», porque é «"pagamento A PRAZO"» e não «"pagamento [AO] PRAZO"; não há determinação».

Outra coisa, diríamos nós agora, é apenas 'escrever à máquina' (escrever COM máquina), diferente de 'escrever a máquina' (gatafunhar as placas da máquina com letras) ou apenas 'escrever à mão' (escrever COM a mão) diferente de escrever na mão, cábulas, por exemplo). Não será assim?

Venâncio disse...

Esta é uma típica (além de grave, a até absurda) forma de centralismo brasileiro. Saberá o Paulo Araujo que, em Portugal, se distinguem NITIDAMENTE na pronúncia a casa e à casa?

Não tenho, aliás, nada contra ortografias (e mesmo gramáticas) divergentes entre brasileiro e português.

Venâncio disse...

Para maior esclarecimento:

Em Portugal não se distinguem o a artigo e o a preposição. Ambos soam como o «a» final de «nada» na pronúncia carioca.

Mas distingem-se os dois da crase à, pronunciada tal como no Brasil.

Portanto, em Portugal distinguimos - também na prolação - «Vou a casa» de «Vou à casa». Conclusão: para nós, o magno problema da crase simplesmente não existe, e não precisa portanto de solução radical... mesmo numa «boa reforma ortográfica» que, noutros terrenos, será decerto bem-vinda.

Venâncio disse...

Para além da questão ortográfica e fonológica, está ainda a semântica.

«Vou à casa» significa «Vou a determinada casa que tu e eu sabemos qual é», enquanto «Vou a casa» significa «Vou a uma casa que é minha».

Esta distinção ortográfica deve, pois, conservar-se. Mesmo no Brasil.