28.9.10

Revisão

Desunião ibérica


      E ainda um dia aparecerá um revisor com ganas de aspar qualquer vestígio de castelhanismo ou tudo que o semelhe na obra de Camilo. Dou-lhe já, a esse ignoto carrasco, como pábulo algumas frases mais suspeitas de Camilo, e coligidas somente nos Mistérios de Lisboa.
      «Imaginei-me com um braço quebrado, com uma gonilha ao pescoço, com oito dias de pão e água, com o ódio do padre eternamente irritado contra mim» (p. 52). Por causa da gonilha, que podia ser golilha, golilla. «A aparição improvisa da mãe a um filho, que sente pulsar no seu um coração cuja existência ignorava — uma surpresa assim, traz consigo um terror santo, que deve ser a preexistência do homem na presença de Deus» (p. 62). É ler Cervantes, se se quer ver «improvisos» e «improvisas». «Um, porém, prendia-me a atenção mais que os outros, por isso que o bruxulear da lâmpada projectava às vezes um relâmpago fugitivo por sobre a escuridade da moldura» (p. 84). Escuridad, obscuridad. «Minha mãe levantou-se, e caminhou com firmeza, mas calada, e recolhida, como se continuasse ainda a sua prática com os espíritos invisíveis» (p. 108). Não faltam, em Cervantes, pláticas, para nosso gosto (gusto?). «Apenas os vestígios da maceração desapareceram da face de D. Ângela de Lima, o conde, recebido em casa de seu futuro sogro, encontrou um sorriso nos lábios da filha» (p. 189). Também suspeito. Apenas, mal... «Alberto de Magalhães viera do Brasil. Quando, e donde fora, ninguém o sabia, nem ele dava lugar a perguntarem-lho» (p. 252). Ainda mais suspeito. «Vi-a chorar, cruzei as pernas, e roí as unhas com o donaire de um cínico enfastiado» (p. 305). A machadada final. Mas há mais, muito mais, mas esse negregado revisor sempre poderia socorrer-se da perspicácia do revisor antibrasileiro.

[Post 3918]

2 comentários:

Anónimo disse...

Há coisas que são e não parecem, e outras que parecem e não são.
- Montexto

Anónimo disse...

Por exemplo, e estirando um pouco mais o inventário sem sair de Camilo, mas agora com referência ao francês, esclarece Mário Barreto (Fatos da Língua Portuguesa», cap. VIII): «Camilo, no vol. II, cap. V, p. 53 do romance "O Judeu" (ed. de 1886) escreve: "Esta enfermidade cerebral guareceu-a lentamente o correr do tempo."
»Tenho para mim que fez grandes serviços à língua o novelista português reabilitando nomes que passaram a obsoletos, como o verbo "guarecer", e que nos dicionários vulgares vêm marcados com o ferro de "antiq." (antiquados). No exemplo do eminente escritor cujo voto era mui respeitável em matéria de linguagem, aprenderão que o citado verbo não é galicismo aqueles que julgam barbarismo o uso de certas palavras como o verbo "atender" na significação de "esperar", "sujeito" por "assunto", "entender" por "ouvir" ou "escutar", "defender" na significação de "proibir", e outros numerosos exemplos deste jaez, que poderiam alegar-se de nossos livros primitivos. A circunstância de que são parecidas com as francesas não é razão, nem sequer argumento para capitularmos tais palavras de galicismos. São palavras essas frequentemente empregadas pelos nossos antigos escritores e que mostram que as línguas portuguesa e francesa, como nascidas ambas da latina, ramos do mesmo tronco, deviam ter entre si, nos seus princípios, mais pontos de contacto e semelhança. "Abrevar", por exemplo, parece ser a palavra francesa que vem ressupinar-se na desinência portuguesa, como se vê em "acaparar" e "debutar". Pos é verbo antigo, e não uma desas palavras transpirenaicas disfarçadas de portuguesas: significa dar de beber, e diz-se do gado.
»Entre as línguas românicas há palavras de uso diário para umas, e arcaicas paras as demais. Se palavras tidas por arcaicas em português, os franceses as usam correntemente, o português conserva muitas dições já desaparecidas do francês. Há compensações; é o que é.
»"Guarecer" é forma incoativa de "guarir", e "guarir", segundo Frederico Diez, provém do gótico "werjan", proteger, defender, pôr em segurança; é também o primitivo do francês "guarire" (curar) etc.
»De guarecer podemos citar os três seguintes exemplos do insigne fr. Luís de Sousa, e recomendamos acerca dessas vozes que hoje, aos olhos de muitos, podem passar por galicismo, sendo mui castiças, a leitura do parág. 451 e seg. da "Réplica" do senador Rui Barbosa, o qual em meio das preocupações de Estado não descura os bons estudos», etc, etc.