Passam de duzentas as vezes que Cervantes usou o verbo sacar no D. Quixote. Não sei, nem isso agora importa, como os traduziu José Bento. Importa isto: em espanhol, sacar não significa exactamente o mesmo que em português. Num texto que estou agora a ler, que é tradução do inglês, vejo e horrorizo-me com o abuso e impropriedade do verbo sacar. Há sempre alguém a sacar uma máquina fotográfica da mochila, a sacar de um cofre que estava num armário, a sacar de um livro do interior daquele cofre, a sacar um casaco de uma caixa, a sacar um aviso de um quadro, a sacar do telemóvel guardado no porta-luvas... Para não ficar completamente desmoralizado, alguém saca, e eu faria o mesmo, e logo se veria contra quem, de uma pistola.
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9 comentários:
Deve ser efeito de muitas causas, entre as quais a do menor esforço, reforçada de preguicite aguda em procurar a boa e própria forma. Mas eu nisto torno sempre a bater na mesma tecla: resultará mais do desconhecimento da língua de chegada do que da traduzida. Sempre me pareceu que para traduzir é ainda mais necessário conhecer a própria língua do que qualquer outra. Lembro-me de ter lido algures que Proust traduziu Ruskin com base em versões literais da mãe e amigos, mais uns rudimentos do inglês, decerto.
- Montexto
Ainda a propósito do que se tem vindo a comentar, e lançando mais uma acha para a fogueira da vaidade literária, há obra de 2 ou 3 dias, no último número da revista «Saber de Caça», li «caça maior» referida à de javalis e veados, quando em bom português esta modalidade do exercício cinegético se designa por «caça grossa». «Caça maior» é a versão literal do castelhano «caza mayor», obedecendo às causa apontadas na nota anterior.
Já agora seria curioso verificar como restituiu José Bento, tantas vezes trazido à colecção neste blogue, o subtítulo do ensaio de Ortega y Gasset sobre a caça. Li-o em castelhano, comprei-o depois nessa tradução, que ofereci a um tio caçador e que muito o apreciou, de modo que não disponho do volume à mão.
- Montexto
Errata: na nota anterior, onde se lê «colecção», leia-se «colação».
Dou conta do seguinte facto adicional: principalmente entre os jovens, tem-se generalizado nos últimos anos o uso do verbo sacar para referir a transferência de ficheiros (download) a partir da Internet; este «saca» uma música, aquele «saca» um episódio de uma série de TV, outros «sacam» filmes, etc.
Fernando Ferreira
Caro Fernando Ferreira,
Essa acepção está já mesmo registada no Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora: «coloquial transferir (cópia de ficheiro) através de modem ou rede para a máquina requisitante; descarregar».
Obrigado, caro Helder.
Desconhecia que essa acepção já estivesse dicionarizada.
Fernando Ferreira
"Si todos los ríos son dulces, / de dónde saca sal el mar?"
Pablo Neruda, em "Libro de las preguntas".
Irrespondível...
Responde Fernando Pessoa:
«Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!»
Mensagem, X. Mar Português
- Montexto
Como se diz no voleibol, meu saque foi rebatido.
E rebatendo Neruda, então os rios de Portugal são também salgados.
Curioso é que tanto Portugal quanto o Chile são ricos em sal.
E viva a poesia, em qualquer idioma.
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