30.12.10

Cacofonia

Ouçam-se


      Os revisores também têm de estar atentos às cacofonias. (Mesmo os revisores de publicações periódicas, apesar de hoje em dia isso ter menos importância, pois os jornais já não são lidos em voz alta, como há um século. «Por volta de 1900, por exemplo», escreve David S. Landes na obra A Riqueza e a Pobreza das Nações [Lisboa: Gradiva, 2001], «apenas três por cento da população da Grã-Bretanha era analfabeta, o número para a Itália era 48 por cento, para Espanha 56 por cento, e para Portugal 78 por cento.» Segundo o Censo de 2001, na viragem do século ainda havia 10 % de analfabetos em Portugal.) Têm de se ouvir a ler. Ninguém, neste aspecto, supera o revisor antibrasileiro, atentíssimo. Nenhum «que agora», acredito, alguma vez lhe escapou. «Uma biblioteca inteira de livros a arder caía violentamente ao longo do deserto de cem metros que agora separava o abrigo da escola.» Eu sou mais sensível aos ecos e à prolixidade. É só cortar!

[Post 4250]

10 comentários:

Anónimo disse...

Não há nada menos errado do que uma cacofonia. Se a língua tem tais e tais sons, e se o texto porvetura os une de modo a formar um som que "soa feio" ou "engraçado", paciência! Acaso somos crianças imbecis para ficarmos de risadinhas quando tal sucede?

Anónimo disse...

Uma das provas por que deve passar a boa prosa é a do ouvido: há-de estar dito desde Quintiliano e antes.
Mas em tudo, e muito mais em coisas de sensibilidade e gosto, se deve andar com peso, conta e medida, sem olvidar o «ne quid nimis» da tradição grega.
Uma das coisas que primeiro nos define é aquilo em que atentamos: Ortega Y Gasset «dixit», e com toda a razão. Para bom entendedor...
Há milhões de falantes de português que no seu dia-a-dia devem ter pronunciado e escrito a conjugação em que a «que» se segue «agora», sem todavia ouvirem, farejarem ou sentirem nela nada escabroso ou cacofónico.
Receio o que faria e não faria o tal revisor e outros muitos com ele ao celebérrimo e sublime «Alma minha gentil que te partiste/
Tão cedo desta vida descontente», etc.
- Montexto

Francisco Agarez disse...

Receio bem que a oralidade seja mais uma vítima dos tratos de polé a que a língua é sujeita. Mas pode ser que me engane.

Venâncio disse...

Não compreendo inteiramente, Helder.

A pronúncia portuguesa mais genuína é ki agóra, com um «i» breve, a contrariar o hiato.

De resto, acho um pouco hipocôndrica essa atenção. Não sei se é o seu caso, mas há quem condene «uma mão»...

Anónimo disse...

«Hipocôndrica»?
Venâncio, procurei no Aulete, Priberam e Infopédia, todos em linha, na 25.ª ed. do Cândido de Figueiredo e numa antiga do da Porto Editora, e com esse sentido só se me deparou «hipocondríaco, hipocondríaca».
Já evoluímos para «hipocôndrico»? Eu pelo menos não sabia (o que também pouco ou nada significa).
- Montexto

Paulo Araujo disse...

Oh! poderoso mal a que entrego! / Que, no meio do justo desengano, / me possa inda cegar um moço cego!
Camões, Bem sei, amor, que é certo o que receio, [Rimas]

Anónimo disse...

. «Que, porquanto as jornadas ao sertão, que se fazem, são ordinariamente, perigosas, por razão dos bárbaros, para segurar os religiosos e os índios que forem nas ditas jornadas», etc: carta do imperador da língua portuguesa a el-rei D. João IV, Maranhão, aos 6 de Abril de 1654.

. «Com cordas por as ruas o levavam,/levando sobre os ombros o troféu/ da vitória que as almas alcançavam»: Camões, Elegia VIII.

. «Alçar por rei», escreve a cada passo o velho Fernão Lopes na «Crónica de D. João I», e decerto nas outras.

Tremo só de pensar que pode calhar ao tal revisor «rever» a próxima edição dos clássicos...
- Montexto

Venâncio disse...

Tem razão, Montexto. Infelizmente.

Hipocôndrico foi adjectivo de fabrico meu, para aliviar o exacto, mas "encombrant" hipocondríaco, que é adjectivo e ademais substantivo.

Não passou o crivo do primeiro purista. Too bad.

Mas anoto, com gosto, que, no caso atinente, a sensação de hipocondria parece, aqui, maioritária.

Anónimo disse...

Deixe lá: «se non è vero, è ben trovato».
- Mont.

Anónimo disse...

. «FiCA AGOra sendo a flor/ A cor que nos olhos tendes,/ Porqe são vossos e verdes».
Camões, «Lírica», 1932, p. 7.

. «CruelíssiMA MOrtre».
Vieira, «Sermões», 1748, vol. XV, p. 77.

. «Estando nas Cortes e não saindo nunCA DELAS».
Ib., p. 40.

. Mas sobretudo: «Há tempos alguns jornalistas tentaram arreliar o falecido Professor Agostinho de Campos, só por ter escrito – «O que Aquilino…» – que tinha o suposto defeito sónico de – O caquilino… Ora, era simples questão de ler convenientemente: – “O que/ Aquilino…” ou – “o qui Aquilino…”
Não, não se deve descobrir em tudo defeitos.»
Vasco Botelho de Amaral, «Meditações Críticas sobre a Língua Portuguesa – Estudos de Estética e Psicologia da Linguagem, Problemas da Moral do Estilo, Personalidade do Idioma Português», Edições Gama, Lisboa, MCMXLV, p.89 e ss.

. E ainda desta obra, p. 90: «Seria um nunca mais acabar de exemplos. Um “nunca acabar”! Cá está outro cacófato e bem vernáculo.

. Récipe: ler-lhe o capítulo «Fatalidade das Cacofonias», pp. 87-102.
- Mont.