15.1.11

«Meio», advérbio

Sem meias-tintas


      «Uma anciã de noventa anos já meia cega, que não tivesse lá estado, tê-lo-ia “reconhecido inequivocamente”» (Crimes, Ferdinand von Schirach. Tradução de João Bouza da Costa e revisão de Clara Boléo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 65).
      Como a anciã teria, como é normal num ser humano, dois olhos, poderia ser «meia cega», sim, ou seja, cega de um olho. Contudo, correcto é meio cego(a), isto é, «mais ou menos cego(a)», «com problemas de visão». Via mal dos dois olhos. Meio é ali advérbio, é invariável. É ignorância, porque a norma moderna é diversa, mas já alguém virá afirmar que nos clássicos era assim e que não se deve dizer de outro modo. Lá se avenha... Podíamos referir o exemplo clássico, de Camões, «uns caem meios mortos». Vamos antes para um exemplo de D. Francisco Manuel de Melo, na Carta de Guia de Casados: «O homem que casa com mulher de pouca idade, leva a demanda meia vencida.» Meia está a modificar um adjectivo/particípio, logo, é um advérbio, é invariável. Queremos, à fina força, que «meia» fique na frase? Pois bem, ei-la: «O homem que casa com mulher de pouca idade, leva meia demanda vencida.»

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14 comentários:

Anónimo disse...

Esse alguém «c'est moi».
Mas não venho dizer exactamente isso.
Venho dizer que a regra é realmente essa: usar em tal caso «meio», advérbio, como invariável. Eu assim faço, e, se dependesse de mim, aconselharia que assim se fizesse.
Mas essa e outras concordâncias afins foram usadas e estão tratadas por muitos e bons autores, que as explicam por razões (não, decididamente aqui o meu ouvido não sente cacófato censurável) até certo ponto atendíveis, porventura mais do que durante os cinco minutos de Cândido de Figueiredo.
Admais, os clássicos não dizem só dessa maneira; os clássicos em geral seguem a regra, mas ocasionalmente, aqui ou ali, por força do contexto, da atracção, ou de qualquer outro motivo ou influxo mais ou menos inconsciente, ou nalguns lugares até por descuido, deixam-se arrastar para a variação.
Portanto, nos clássicos era assim, mas não sempre assim, nem maioritariamente assim, pelo que não se dirá que não deve ser de outro modo.
- Montexto

Helder Guégués disse...

Ah, bem.

Anónimo disse...

Voltaremos ao assunto.
- Mont.

Jorge da Mata disse...

Isto é, mal. Os clássicos só servem de exemplo se já foram mastigados por outros.

Anónimo disse...

Os clássicos só servem de exemplo quando devem servir de exemplo, isto é, quando alcançaram o estatuto de clássicos, isto é, de exemplares, o que significa que foram não só mastigados por outros, mas por muitos, para não dizer por todos ou quase todos os que contam, e não só mastigados, mas sobretudo digeridos, assimilados, aprovados, seguidos, imitados e mais ou menos pressupostos e sentidos em obras posteriores que aspiram a igual estatuto de exemplaridade, da qual, e só da qual, decorre a verdadeira e lídima autoridade.
É a basezinha, caro Jorge da Mata, que por infelicidade me forçam constantemente a repassar. Não há-de ser esta a última vez, ai de mim!
- Montexto

Anónimo disse...

«Entre a sintaxe observada pelos clássicos e a que geralmente seguimos hoje em dia, há notáveis diferenças. As regras ou preceitos gramaticais que os clássicos observavam para estabelecer a concordância e harmonia das partes da oração, foram múltiplas e variadas; não como agora, constantes e fixas.» E, apresentados vários exemplos de concordância por atracção, de silepse ou «constructio ad sensum», de concordância psicológica em vez da gramatical: «Não havemos de corrigir nas suas obras os grandes mestres como Camões, do mesmo modo que o faríamos nos cadernos dum aluno, mas estudá-los como uma maneira doutra época e que não deixou de ser de todo da fala actual.»
Lição de Mário Barreto, «Através do Dicionário e a Gramática», 1986, cap. II.
- Mont.

Anónimo disse...

1 – com quanta mais razão
2 – com quanto mais razão
3 – perdem muita mais honra
4 – perdem muito mais honra
5 – atrai muitas mais coisas
6 – atrai muito mais coisas
7 – impérios muitas mais vezes destruídos
8 – impérios muito mais vezes destruídos
9 – quantas mais mão correr, mais diminuirá
10 – quanto mais mão correr, mais diminuirá
11 – com tanta mais vontade abraçou quanto mais em favor dela se demonstravam
12 – com tanto mais vontade abraçou quanto mais em favor dela se demonstravam
13 – com tanta mais ânsia de o ouvir
14 – com tanto mais ânsia de o ouvir

Que lhe parecem, Hélder: correctas, incorrectas?...
- Mont.

Anónimo disse...

Leia-se: mãos, e não: mão.
- Mont.

Helder Guégués disse...

Em relação às frases dos números ímpares, a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira diz que tais formas têm de aceitar-se, sem embargo da censura dos gramáticos.

Anónimo disse...

Mas não de gramáticos da craveira de Mário Barreto, que não confunde os factos da lígua (dedicou-lhes três livros com este título) e a prática e uso das melhores penas com algumas das regras com que alguns gramáticos querem domesticar essa língua.
As frases ímpares têm por si praticamente todos os autores modelares do idioma.
O caso está tratado por Barreto em «Através da Gramática e do Dicionário», 1986, cap. II. Se o não tiver, diga, que lhe traslado para aqui o essencial.
Mas mais uma vez verifico que grande, grande é também a «Portuguesa e Brasileira». Lá está ela com a expor as várias possibilidades e a indicar a boa doutrina: «Têm de aceitar-se.»
Está lá tudo, Helder. Em vez de andarem com dionários da academia da treta, publicassem, actualizando-a, a parte linguística da enciclopédia.
- Montexto

Helder Guégués disse...

É uma obra admirável, essa enciclopédia. Durante muito tempo, foi praticamente a minha única fonte em matéria de gramática. Se tiver à mão o que diz Barreto na obra Através da Gramática e do Dicionário, todos agradeceremos.

Anónimo disse...

Fala então Mário Barreto, «Através da Gramática e do Dicionário», Instituto Nacional do Livro – Fundação Nacional Pró-Memória, Fundação Casa de Rui Barbosa, Ministério da Cultura e Presença, Rio de Janeiro, Coleção Linguagem, n.º 26, 4.ª edição, 1986, cap. II:
Alguém entendia «que, por os advérbios serem sempre invariáveis [foi por aqui que isto começou, se bem se lembram, com «meio», advérbio], é forma mais exacta “Com ‘quanto’ mais razão, ‘muito’ mais honra” do que “Com ‘quanta’ mais razão, ‘muita’ mais honra.”»
A forma tida «por incorrecta é abonada por autoridades de inteira fé e, embora os advérbios sejam invariáveis, os exemplos “Com ‘quanta’ mais razão, ‘quantas’ mais diligências, ‘muita’ mais honra, ‘tantos’ menos trabalhos, ‘poucas’ mais palavras”, podem considerar-se correctos e explicar-se por uma lei de sintaxe chamada “atracção”. Propendo a crer, porém, que nos ditos exemplos as palavras “tanto, quanto, muito, pouco” são adjectivos que formaram o comparativo com os advérbios “mais” e “menos” pospostos: “tanto mais, quanto menos”, etc. Daqui se infere claramente que, quando estes comparativos são seguidos do substantivo, o “tanto”, o “quanto”, etc., tomarão dele o género e o número. Assim diremos: “Quantos mais vícios – Quanta mais fé Tantos mais perigos – Muitas mais coisas – Muitas mais vezes.”
»Seja qual for a explicação que se lhes queira dar, é certo e além de tida a dúvida que os exemplos de “tanto, quanto, muito”, variáveis, indo expressos “mais” ou “menos” têm por si escritores de maior autoridade. Os factos são respeitabilíssimos, muito mais respeitáveis que todas as nossas filosofias, as quais se neles não se fundam, reduzem-se a borbulhas fantasmagóricas, a entes de razão. Dir-me-ão: são descuidos dos escritores. Sucede, porém, que em todos eles se encontra a mesma coisa. Os nossos escritores são muito descuidados. Para que serve então a autoridade deles? Para aceitarmos o que nos agrade e recusarmos o que nos desagrade? Neste caso não são eles que fazem autoridade, mas sim nós, o nosso gosto, as nossas regras “a priori”. Um idioma não é um sistema que se forje no cérebro de ninguém à força de combinar réguas, esquadros e compassos na nossa fantasia. De saber o meu estimável correspondente que, não sem tal ou qual graça e viveza, há na nossa língua certas formas de dizer singulares e especiosas, certas construções anómalas e extravagantes que, medidas pela pouquidade do nosso entendimento que as quer reduzir à razão gramatical, seriam condenadas. Têm, porém, a seu favor o ultrapotente arbítrio do Uso e a grandíssima autoridade dos Escritores.
»Eis aqui algumas autoridades que respondem à consulta de se poder dizer e escrever “tanto, quanto, muito, pouco”, seguidos de “mais” ou “menos” e de um substantivo e concordando com estes.»
Segue-se página e meia de exemplos de Manuel Bernardes, António Vieira, Filinto Elísio, Camilo, Arnaldo Gama, de que respiguei as frases susocitadas, a que acrescento esta de J. I. Roquete, «Historia Sagrada», t. II, p. 96: «Quantas mais graças lhes faz, quantas mais luzes lhes concede, tanta mais fidelidade e reconhecimento exige deles».

Nota: outro aspecto: «é certo e além de toda a dúvida que…», escreveu Barreto. Hoje, não sei por quê, todo o bicho-careto se acha na obrigação de escrever neste passo: «é certo e para além de toda a dúvida que…». Sempre mais compridos e complicados, isto é, o pior do barroco.
- Mont.

Anónimo disse...

Corrija-se para «Deve saber o meu estimável correspondente», e sobretudo acentue-se «História Sagrada»; senão, planta-se-me já aí um a arguir-me de cacógrafo...
- Mont.

Anónimo disse...

De gisar este passo, que muita valia tem para tantas questões aqui neste blogue tratadas amiúde:

"Um idioma não é um sistema que se forje no cérebro de ninguém à força de combinar réguas, esquadros e compassos na nossa fantasia. Deve saber o meu estimável correspondente que, não sem tal ou qual graça e viveza, há na nossa língua certas formas de dizer singulares e especiosas, certas construções anómalas e extravagantes que, medidas pela pouquidade do nosso entendimento que as quer reduzir à razão gramatical, seriam condenadas. Têm, porém, a seu favor o ultrapotente arbítrio do Uso e a grandíssima autoridade dos Escritores."